Vestido de Noiva (7 page)

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Authors: Nelson Rodrigues

BOOK: Vestido de Noiva
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(Som de derrapagem. Um grito de mulher. Ambulância. Personagens imóveis)

 

ALAÍDE
- Mais bonito é ser assassinada por um menino. Um colegial!
(noutro tom)
Ele usava uniforme cáqui?

 

CLESSI
-
(doce e evocativa)
De dia, sim. De noite, não.

 

ALAÍDE
- Eu queria ter amado um menino. O seu tinha 17 anos?
(a outra confirma)
Devia ser muito branco.

 

CLESSI
-
(inquieta)
Seria tão bom que cada pessoa morta pudesse ver as próprias feições! Eu fiquei muito feia?

 

ALAÍDE
- O repórter disse que não. Disse que você estava linda.

 

CLESSI
-
(impressionada)
Disse mesmo? Mas...
(pausa, com o olhar extraviado)
E o talho no rosto?
(abstrata)
Uma punhalada no rosto não é possível! Foi navalhada, não foi?
(noutro tom)
Eu queria tanto me ver morta!

 

(Aproxima-se dos círios. Hesita. A mulher inatual faz que levanta um invisível lenço a cobrir um invisível rosto)

 

CLESSI
-
(espantada)
Gente morta como fica!...

 

(Foge com Alaíde. A mulher inatual comenta com os companheiros do velório)

 

MULHER INATUAL
- Parece sorrir.

HOMEM DE BARBA
-
(com um gesto imenso e um tom profundo)
Quem morre descansa.

 

MULHER INATUAL
- O senhor é espírita?

 

HOMEM DE BARBA
-
(com um gesto ainda mais amplo)
Respeito todas as religiões.

 

(Pausa. Os dois ajoelham-se, fazem o sinal da cruz e levantam-se)

 

MULHER INATUAL
-
(ajeitando qualquer coisa no vestido)
Eu acho que vou-me embora.

 

HOMEM DE BARBA
- (depois de olhar para o lado e faunesco)
Já?

 

MULHER INATUAL
- É tarde.

 

HOMEM DE BARBA
-
(olhando outra vez para os lados)
Mora longe?

 

MULHER INATUAL
- Assim, assim. Mas o lugar é muito escuro. Fico com receio.

 

HOMEM DE BARBA
-
(concupiscente)
Posso acompanhá-la.

 

MULHER INATUAL
- Não vale a pena.

 

HOMEM DE BARBA -
(com um novo gesto)
Eu ia sair mesmo.

 

MULHER INATUAL
- Ah, então...

 

(A mulher vai ao invisível caixão e faz o sinal da cruz. Sai com o homem de barba)

 

HOMEM DE BARBA
-
(grave, profundo e pausado)
Aliás eu sou contra mulher andar sozinha tão tarde.

 

(O moço romântico, indignado, passa pelo invisível cadáver, faz um rápido sinal da cruz e segue adiante. Já ia sair, quando bate na testa, lembrando-se dos círios. Volta e apanha dois círios; o homem de barba faz o mesmo. Trevas. Luz no plano da alucinação. Pedro e Alaíde, de noivos, ajoelhados diante da cruz. Projetor solar vertical. Disco de Ave-Maria, como de Rosa Pancelle)

 

VOZ DE LÚCIA
-
(microfone, em crescendo)
Eu faço escândalo. Se eu disser uma coisa que sei!... Não me desafie, Alaíde! Eu é que devia ser a noiva! Você é um monstro! O único homem que eu amei! Nunca me casei com os seus namorados! O que eu não tive foi seu impudor! ...

 

(Ave-Maria atenuada. De repente surge Lúcia, correndo, vestida de noiva)

 

LÚCIA
- Pedro!

 

ALAÍDE
- Você?

 

PEDRO
- Ah, você, Lúcia! Até que enfim!

 

(Lúcia abraça-se Pedro. Falam-se quase boca com boca)

 

LÚCIA
- Demorei, meu filho, porque custei a encontrar a linha branca.

 

ALAÍDE
- Onde é que você achou?

 

LÚCIA
- Na cômoda. Estava na gaveta de baixo.

 

ALAÍDE
-
(triunfante)
Eu não disse?! Eu tinha posto lá!

 

PEDRO
-
(cínico)
Se você chegasse um pouquinho mais tarde, o casamento teria se realizado!

 

LÚCIA
-
(desprendendo-se de Pedro, gritando, com o punho erguido, como na saudação comunista)
Eu é que devia ser a noiva!...

 

ALAÍDE
-
(excitadíssima, também com o punho erguido)
Mentirosa! Sua mentirosa! Roubei seu namorado e agora ele é meu! Só meu!

 

LÚCIA
-
(com o punho erguido)
Confessou. Até que enfim! Pelo menos, diga, berre: "Roubei o namorado de Lúcia!!!..."

 

ALAÍDE
-
(perturbada)
Não digo nada! Não quero!

 

(Trevas)

 

CLESSI
-
(microfone, bem lenta)
Duas noivas! Interessante, duas noivas! Mas que foi que disse o padre, quando Lúcia apareceu? Renda da Bélgica, você mandou buscar. Quanto custou? Não diga. Deixa ver se eu adivinho? Aposto que foi... Mais ou menos...

 

(Luz no alto de uma das escadas laterais, no plano da realidade. Pedro, com roupa normal, falando com o médico de serviço. Projetor vertical sobre os dois)

 

PEDRO
-
(comovido)
Eu me chamo Pedro Moreira.

 

MÉDICO
- Pois não.

 

PEDRO
-
(comovido)
Sou o marido dessa senhora que está sendo operada.

 

MÉDICO
- Caso de atropelamento, não foi?

 

PEDRO -
(com angústia)
Sim, doutor. Foi atropelada na Glória. Só ainda agora é que eu soube. Telefonaram para o escritório.
(expectante)
O estado dela, qual é, doutor? Muito grave?

 

MÉDICO -
(reticente)
Bem, o estado dela não é bom.

 

PEDRO
-
(patético)
Não é bom?
(noutro tom)
Mas há esperança?

 

MÉDICO
- Sempre há esperança. Está-se fazendo tudo.

 

PEDRO
-
(agoniado)
E ela sofreu muito, doutor?

 

MÉDICO
- Não. Nada. Chegou em estado de choque. Nem vai sofrer nada.

 

PEDRO
-
(chocado)
Estado de choque?

 

MÉDICO
- Foi. E isso para o acidentado é uma felicidade. Uma grande coisa. A pessoa não sente nada - nada.

 

(Trevas. Desce o pano rapidamente)

 

 

 

 

 

 

 

FIM DO SEGUNDO ATO

TERCEIRO ATO

 

(Começa o terceiro ato com o teatro em trevas: Clessi e Alaíde ao microfone)

 

CLESSI
-
(microfone)
Talvez você não tenha assassinado seu marido.

 

ALAÍDE
-
(microfone)
Mas eu me lembro! Foi com um ferro, bati na base do crânio! Aqui.

 

CLESSI
-
(microfone)
Às vezes, pode ter sido sonho!

 

ALAÍDE
-
(microfone, com um acento doloroso)
Sonho, será? Estou com a cabeça tão virada! Pode ser que tudo tenha ficado só na vontade!

 

CLESSI
-
(microfone)
Então aconteceu o quê, na igreja?

 

(Luz no plano da memória. Estão Clessi e o seu namorado vestidos à maneira de 1905)

 

ALAÍDE
-
(microfone)
Estou sempre com a idéia que seu namorado tinha a cara de Pedro!

 

(Clessi e Pedro sentados, num recamier)

 

CLESSI
-
(com o mesmo vestido, mas sem chapéu)
Quer ver meus coelhinhos no quintal?

 

NAMORADO
-
(frio)
Não.

 

CLESSI
-
(meiga
) Tem uns tão bonitos!
(levantam-se os dois. Ele olha-a, depois senta-se de costas para ela. Clessi anda e volta)
 

 

CLESSI
-
(com impaciência e dengue)
Ih! Você é criança demais!

 

NAMORADO
- É o que você pensa!

 

CLESSI
-
(sentando-se, lânguida)
Então não é?

 

NAMORADO
-
(com raiva concentrada)
Você acha que eu sou?

 

CLESSI
-
(com languidez)
Aceitou dinheiro de mim!
(provocadora)
Não queria, mas aceitou!

 

NAMORADO
-
(atônito)
Mas foi você que botou no meu bolso! Insistiu!

 

CLESSI
- Estou brincando, bobo! Aquilo não tem nada demais!

 

NAMORADO
-
(levantando-se)
Você brinca assim comigo e um dia...

 

CLESSI
-
(brincando)
Você me bate!

 

NAMORADO
-
(sério)
Clessi...

 

CLESSI
- Senta aqui!

 

NAMORADO
-
(sentando-se) (baixo)
Sabe o que é que a gente podia fazer?

 

CLESSI
-
(acariciando-o nos cabelos)
O quê?

 

NAMORADO
- Adivinhe.

 

CLESSI
- Diga.

 

NAMORADO
-
(baixo)
Morrer juntos.
(face a face, os dois)
Vamos?

 

CLESSI
-
(sonhadora)
Você se parece tanto com o meu filho que morreu! Ele tinha 14 anos, mas tão desenvolvido!

 

NAMORADO
-
(súplice)
Quer?

 

CLESSI
-
(meiga)
Olhe assim.
(pausa, contemplação)
Os olhos dele! Direitinho!

 

(Trevas. Disco de derrapagem, grito, ambulância. Luz no plano da alucinação. Pedro, Alaíde e Lúcia de noivas. Cruz)

 

LÚCIA
-
(furiosa, punho erguido)
Diga bem alto, para todo o mundo ouvir: "Roubei o namorado de Lúcia."

 

ALAÍDE
- Digo, sim!

 

LÚCIA
- Diga, quero ver!

 

ALAÍDE
-
(em alto e bom som)
Roubei o namorado de Lúcia!

 

LÚCIA
-
(excitada)
Viu, Pedro! Ela disse! Não teve vergonha de dizer!

 

ALAÍDE
-
(agressiva)
Digo quantas vezes quiser!

 

PEDRO
-
(cínico)
Briguem à vontade! Não faz mal!

 

ALAÍDE
-
(repreensiva)
Você não devia dizer isso, Pedro. É cinismo.

 

LÚCIA
-
(sardônica)
Mas oh! Só agora você soube que ele era cínico! Me admira muito!

 

ALAÍDE
-
(dolorosa)
Sempre soube.

 

LÚCIA
-
(com desprezo)
Então por que tirou Pedro de mim?

 

ALAÍDE
- Você sempre com esse negócio de tirou, tirou!
(num transporte)
É tão bom tirar o namorado das outras.
(irônica)
Então de uma irmã...

 

LÚCIA
-
(vangloriando-se)
Você continua pensando que ele é só seu?

 

ALAÍDE
- Penso, não. É.

 

LÚCIA
. - Já lhe disse que é de nós duas, minha filha! Não quer acreditar, melhor!

 

PEDRO
-
(para Lúcia)
Você não devia dizer isso! Alaíde não precisava saber!

 

ALAÍDE
-
(patética)
Mas agora sei. Chegou tarde a recomendação.

 

(Entra a mãe das duas. Vem-se abanando)

 

ALAÍDE
-
(excitada)
Foi bom a senhora ter chegado, mamãe!

 

D. LÍGIA
-
(sempre de leque)
Brigando outra vez!

 

LÚCIA
-
(acusadora)
É ela, mamãe!

 

ALAÍDE -
(indignada)
Eu? Ainda tem coragem!... Mamãe eles estão desejando a minha morte!

 

D. LÍGIA
- Tire isso da cabeça, minha filha. Você não vê logo!

 

ALAÍDE
-
(patética)
Quando eu morrer, eles vão-se casar, mamãe! Tenho certeza!

 

PEDRO
- Você parece doida, Alaíde!

 

ALAÍDE
-
(para Lúcia)
Diga agora o que você disse de mamãe!

 

LÚCIA
-
(virando-lhe ás costas)
Quer me intrigar com mamãe!
(para Alaíde)
Não adianta!

 

D. LÍGIA -
(abanando-se)
Vamos acabar com isso! É feio!

 

ALAÍDE
-
(com escárnio)
Ela está com medo!
(para Lúcia)
Não quer dizer?

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