Authors: Eça de Queirós
Luísa, quebrada, sem força de responder, encolhia-se sob aquela cólera como um pássaro sob um chuveiro. Juliana ia-se exaltando com a mesma violência da sua voz. E as lembranças das fadigas, das humilhações, vinham atear-lhe a raiva, como achas numa fogueira.
— Pois que lhe parece? - exclamava. Não que eu coma os restos e a senhora os bons bocados! Depois de trabalhar todo o dia, se quero uma gota de vinho, quem mo dá? Tenho de o comprar! A senhora já foi ao meu quarto? E uma enxovia! A percevejada é tanta que tenho de dormir quase vestida! E a senhora se sente uma mordedura, tem a negra de desaparafusar a cama, e de a catar frincha por frincha. Uma criada! A criada é o animal. Trabalha se pode, senão rua, para o hospital. Mas chegou-me a minha vez - e dava palmadas no peito, fulgurante de vingança. - Quem manda agora, sou eu!
Luísa soluçava baixo.
— A senhora chora! Também eu tenho chorado muita lágrima! Ai! Eu não lhe quero mal, minha senhora, certamente que não! Que se divirta, que goze, que goze! O que eu quero é o meu dinheiro. O que eu quero é o meu dinheiro aqui escarrado, ou o papel há de ser falado! Ainda este teto me rache, se eu não for mostrar a carta ao seu homem, aos seus amigos, à vizinhança toda, que há de andar arrastada pelas ruas da amargura!
Calou-se, exausta; e com a voz entrecortada de cansaços:
— Mas dê-me a senhora o meu dinheiro, o meu rico dinheiro, e aqui tem os papéis; e o que lá vai, lá vai, e até lhe levo outras. Mas o meu dinheiro para aqui! E também lhe digo, que morta seja eu neste instante com um raio, se depois de eu receber o meu dinheiro esta boca se torna a abrir! - E deu uma palmada na boca.
Luísa erguera-se devagar, muito branca:
— Pois bem - disse, quase num murmúrio - eu lhe arranjarei o dinheiro. Espere uns dias.
Fez-se um silêncio - que depois do ruído parecia muito profundo; e tudo no quarto como que se tornara mais imóvel. Apenas o relógio batia o seu tique-taque, e duas velas sobre o toucador consumindo-se davam uma luz avermelhada, e direita.
Juliana tomou a sombrinha, traçou o xale, e depois de fitar Luísa um momento:
— Bem, minha senhora - disse, muito seca.
Voltou as costas, saiu.
Luísa sentiu-a bater a cancela com força.
— Que expiação, Santo Deus! - exclamou, caindo numa cadeira, banhada de novo em lágrimas.
Eram quase dez horas quando Joana voltou.
— Não pude saber nada, minha senhora; na inculcadeira ninguém sabe dela.
— Bem, traga a lamparina.
E Joana ao despir-se no seu quarto, rosnava consigo:
— A mulher tem arranjo; está metida por aí com algum súcio!
Que noite para Luísa! A cada momento acordava num sobressalto, abria os olhos na penumbra do quarto, e caía-lhe logo na alma, como uma punhalada, aquele cuidado pungente: que havia de fazer? Como havia de arranjar dinheiro? Seiscentos mil réis! As suas jóias valiam talvez duzentos mil réis. Mas depois, que diria Jorge? Tinha as pratas... Mas era o mesmo!
A noite estava quente, e na sua inquietação a roupa escorregara; apenas lhe restava o lençol sobre o corpo. As vezes a fadiga readormecia-a de um sono superficial, cortados de sonhos muito vivos. Via montões de libras reluzirem vagamente, maços de notas agitarem-se brandamente no ar. Erguia-se, saltava para as agarrar, mas as libras começavam a rolar, a rolar como infinitas rodinhas sobre um chão liso, e as notas desapareciam voando muito leves com um frêmito de asas irônicas. Ou então era alguém que entrava na sala, curvava-se respeitosamente, e começava a tirar do chapéu, a deixar-lhe cair no regaço libras, moedas de cinco mil réis, peças, muitas, profusamente; não conhecia o homem; tinha um chinó vermelho e uma pêra impudente. Seria o diabo? Que lhe importava? Estava rica, estava salva! Punha-se a chamar, a gritar por Juliana, a correr atrás dela, por um corredor que não findava, e que começava a estreitar-se, a estreitar-se, até que era como uma fenda por onde ela se arrastava de esguelha, respirando mal, e apertando sempre contra si o montão de libras que lhe punha frialdades de metal sobre a pele nua do peito. Acordava assustada; e o contraste da sua miséria real com aquelas riquezas do sonho, era como um acréscimo de amargura. Quem lhe poderia valer? - Sebastião! Sebastião era rico, era bom. Mas mandá-lo chamar, e dizer-lhe ela, ela Luísa, mulher de Jorge: - "Empreste-me seiscentos mil réis". - Para quê, minha senhora?" E podia lá responder: "Para resgatar umas cartas que escrevi ao meu amante". Era lá possível! Não, estava perdida. Restava-lhe ir para um convento.
A cada momento voltava o travesseirinho que lhe escaldava o rosto; atirou a touca, os seus longos cabelos soltaram-se; prendeu-os ao acaso com um gancho; e de costas, com a cabeça sobre os braços nus, pensava amargamente no romance de todo aquele verão - a chegada de Basílio, o passeio ao Campo Grande, a primeira visita ao Paraíso...
Onde iria ele, aquele infame? Dormindo tranqüilamente nas almofadas do vagão!
E ela ali, na agonia!
Atirou o lençol; abafava. E descoberta, mal se distinguindo da alvura da roupa, adormeceu, quando a madrugada rompia.
Acordou tarde, sucumbida. Mas logo na sala de jantar a beleza da manhã gloriosa reanimou-a. O sol entrava abundante e radioso pela janela aberta; os canários faziam um concerto; da forja ao pé saía um martelar jovial; e o largo azul vigoroso levantava as almas. - Aquela alegria das coisas deu-lhe como uma coragem inesperada. Não se havia de abandonar a uma desesperança inerte... Que diabo! Devia lutar!
Vieram-lhe esperanças, então. Sebastião era bom; Leopoldina tinha expedientes; havia outras possibilidades, o acaso mesmo; e tudo isto podia, em definitivo, formar seiscentos mil réis, salvá-la! Juliana desapareceria, Jorge voltaria! - E, alvoroçada, via perspectivas de felicidades possíveis reluzirem, no futuro, deliciosamente.
Ao meio-dia veio o criadito de Sebastião; o senhor tinha chegado de Almada; desejava saber como a senhora estava.
Correu ela mesma à porta; que pedia ao Sr. Sebastião, que viesse logo que pudesse!
Acabou-se! Sentia-se resoluta, ia falar a Sebastião... No fim era o que lhe restava: contar ela tudo a Sebastião, ou que a outra contasse tudo a seu marido. Impossível hesitar! E depois podia atenuar, dizer que fora só uma correspondência platônica... A partida de Basílio, além disso, fazia daquele erro um fato passado, quase antigo... E Sebastião era tão amigo dela!
Veio; era uma hora. Luísa que estava no quarto sentiu-o entrar, e só o som dos seus passos grossos no tapete da sala deu-lhe uma timidez, quase um terror. Parecia-lhe agora muito difícil, terrível de dizer... Preparara frases, explicações, uma história de galanteio, de cartas trocadas; e estava com a mão no fecho da porta, a tremer. Tinha medo dele! Ouvia-o passear pela sala; e receando que a impaciência lhe desse mau humor, entrou.
Afigurou-se-lhe mais alto, mais digno; nunca o seu olhar lhe parecera tão reto, e a sua bata tão séria!
— Então que é? Precisa alguma coisa? - perguntou-lhe ele depois das primeiras palavras sobre Almada, sobre o tempo.
Luísa teve uma cobardia indominável, respondeu logo:
— É por causa de Jorge!
— Aposto que não lhe tem escrito?
— Não.
— Esteve muito tempo sem me escrever também. - E rindo:- Mas hoje recebi duas cartas por atacado.
Procurou-as entre outros papéis que tirou da algibeira. Luísa fora sentar-se no sofá; olhava-o com o coração aos pulos, e as suas unhas impacientes raspavam devagarinho o estofo.
— É verdade - dizia Sebastião, revolvendo o maço de papéis - Recebi duas; fala em voltar; diz que está muito secado... - E estendendo uma carta a Luísa: - Pode ver.
Luísa desdobrara-a, e começava a ler; mas Sebastião, estendendo a mão precipitadamente:
— Perdão, não é essa!
— Não, deixe ver...
— Não diz nada, são negócios...
— Não, quero ver!
Sebastião, sentado à beira da cadeira, coçava a barba, olhando-a, muito contrariado. E Luísa de repente, franzindo a testa:
— O quê? - A leitura espalhava-lhe no rosto uma surpresa irritada. - Realmente!...
— São tolices, são tolices! - murmurava Sebastião, muito vermelho.
Luísa pôs-se então a ler alto, devagar:
— Saberás, amigo Sebastião, que fiz aqui uma conquista. Não é o que se pode chamar uma princesa, porque é nem mais nem menos que a mulher do estanqueiro. Parece estar abrasada no mais impuro fogo, por este seu criado. Deus me perdoe, mas desconfio até que me leva apenas um vintém pelos charutos de pataco, fazendo assim ao esposo, o digno Carlos, a dupla partida de lhe arruinar a felicidade e a tenda!
— Que graça! - murmurou Luísa, furiosa.
— Receio muito que se repita comigo o caso bíblico da mulher de Putifar. Acredita que há um certo mérito em lhe resistir, porque a mulher, estanqueira como é, é lindíssima. E tenho medo que suceda algum fracasso à minha pobre virtude...
Luísa interrompeu-se, e olhou Sebastião com um olhar terrível.
— São brincadeiras! - balbuciou ele.
Ela seguiu, lendo:
— Olha, se a Luísa soubesse desta aventura! De resto, o meu sucesso não pára aqui: a mulher do delegado faz-me um olho dos diabos! É de Lisboa, de uma gente Gamacho, que parece que mora para Belém, conheces? E dá-se ares de morrer de tédio, na tristeza provinciana da localidade. Deu uma soirée em minha honra, e em minha honra, creio também, decotou-se. Muito bonito colo.
Luísa fez-se escarlate.
— É uma queda do diabo...
— Está doido! - exclamou ela.
— E aqui tens o teu amigo feito um D. Juan do Alentejo, e deixando um rasto de chamas sentimentais por essa província fora. O Pimentel recomenda-se...
Luísa ainda leu baixo algumas linhas, e erguendo-se bruscamente, dando a carta a Sebastião:
— Muito bem, diverte-se! - disse com uma voz sibilante.
— São lá coisas que se tomem a sério! Não deve tomar a sério...
— Eu! - exclamou ela. - Acho muito natural até!
Sentou-se, começou, com volubilidade, a falar de outras coisas, de D. Felicidade, de Julião...
— Trabalha muito agora para o concurso - disse Sebastião. - Quem não tenho visto é o Conselheiro.
— Mas, quem é essa gente Gamacho, de Belém?
Sebastião encolheu os ombros - e com um ar quase repreensivo:
— Ora, realmente tomou a sério...
Luísa interrompeu-o:
— Ah! Sabe? Meu primo Basílio partiu.
Sebastião teve um alvoroço de alegria.
— Sim?
— Foi para Paris; não creio que volte. - E depois de uma pausa, parecendo ter esquecido Jorge, e a carta: - Só em Paris está bem... Estava no ar para partir. - Acrescentou com pancadinhas leves nas pregas do vestido: - Precisava casar, aquele rapaz.
— Para assentar - disse Sebastião.
Mas Luísa não acreditava que um homem que gostava tanto de viagens, de cavalos, de aventuras, pudesse dar um bom marido.
Sebastião era de opinião que às vezes sossegavam, e eram homens de família...
— Têm mais experiência - disse.
— Mas um fundo leviano - observou ela.
E depois destas palavras vagas calaram-se com embaraço.
— Eu, a falar a verdade - disse então Luísa -, estimei que meu primo partisse... Como tinha havido essas tolices na vizinhança... Ultimamente mesmo quase que o não vi. Esteve aí ontem; veio despedir-se, fiquei surpreendida...
Estava tornando impossível a história de um galanteio platônico, cartas trocadas - mas um sentimento mais forte que ela impelia-a a atenuar, distanciar as suas relações com Basílio. Acrescentou mesmo:
— Eu sou amiga dele, mas somos muito diferentes... Basílio é egoísta, pouco afeiçoado... De resto a nossa intimidade nunca foi grande...
Calou-se bruscamente; sentiu que se enterrava.
Sebastião lembrava-se ouvir-lhe dizer que tinham sido criados ambos de pequenos; mas, enfim, aquela maneira de falar do primo, parecia-lhe a prova maior de que não houvera nada. Quase se queria mal pelas dúvidas, que tivera, tão injustas!...
— E volta? - perguntou.
— Não me disse, mas não creio. Em se pilhando em Paris!
E com a idéia da carta, de repente:
— Então Sebastião é o confidente de Jorge?
Ele riu:
— Oh, minha senhora! Pois acredita...
— E a mim quando me escreve, que se aborrece, que está só, que não suporta o Alentejo... - Mas vendo Sebastião olhar o relógio: - O quê, já? É cedo.
Tinha de estar na Baixa antes das três, disse ele.
Luísa quis retê-lo. Não sabia para quê - porque a cada momento sentia a sua resolução diminuir, desaparecer como a água de um rio que se absorve no seu leito. Pôs-se a falar-lhe das obras de Almada.
Sebastião começara-as pensando que duzentos ou trezentos mil réis fariam as restaurações necessárias; mas depois umas coisas tinham trazido outras - e, dizia, está-se-me tornando um sorvedouro!
Luísa riu, forçadamente.
— Ora, quando se é proprietário e rico!...
— Isso sim! Parece que não é nada: mas uma pintura numa porta, uma janela nova, uma sala forrada de papel, um soalho, e isto e aquilo, e lá se vão oitocentos mil réis... Enfim!...
Levantou-se, e despedindo-se:
— Eu espero que aquele vadio se não demore muito...
— Se a estanqueira der licença... Ficou a passear na sala, nervosa, com aquela idéia. Deixar-se namorar pela estanqueira, e a mulher do delegado, e as outras!... Decerto, tinha confiança nele, mas os homens!... De repente representou-lhe a estanqueira prendendo-o nos braços detrás do balcão, ou Jorge beijando, nalguma entrevista, de noite, o colo bonito da mulher do delegado!... E tumultuosamente apareceram-lhe todas as razoes que provavam irrecusavelmente a traição de Jorge: estava há dois meses fora! Sentia-se cansado da sua viuvez! Encontrava uma mulher bonita! Tomava aquilo como um prazer passageiro, sem importância!... Que infame! Resolveu escrever-lhe uma carta digna e ofendida, que viesse imediatamente - ou que partia ela - Entrou no quarto, muito excitada. A fotografia de Jorge, que ela tirara na véspera do saco de marroquim, ficara no toucador. Pôs-se a olhá-la: não admirava que o namorassem; era bonito, era amável... Veio-lhe uma onda de ciúme, que lhe obscureceu o olhar; se ele a enganasse, se tivesse a certeza da "mais pequena coisa" - separava-se, recolhia-se a um convento, morria decerto, matava-o!...