Authors: Eça de Queirós
— É o presidente do conselho. Não viu? Fez-me um sinal de dentro. - Começou logo o seu elogio: era o nosso primeiro parlamentar; vastíssimo talento, uma linguagem muito castigada! - E ia decerto falar das coisas públicas, mas Luísa atravessou para os Mártires, erguendo um pouco o vestido por causa de uns restos de lama. Parou à porta da igreja, e sorrindo:
— Vou aqui fazer uma devoçãozinha. Não o quero fazer esperar. Adeus, Conselheiro, apareça. - fechou a sombrinha, estendeu-lhe a mão.
— Ora essa, minha rica senhora! Esperarei, se vir que não se demora muito. Esperarei, não tenho pressa. - E com respeito: - Muito louvável esse zelo!
Luísa entrou na igreja desesperada. Ficou de pé debaixo do coro, calculando: - "Demoro-me aqui, ele cansa-se de esperar e vai-se!" Por cima reluziam vagamente os pingentes de cristal dos lustres. Havia uma luz velada, igual, um pouco fosca. E as arquiteturas caiadas, a madeira muito lavada do soalho, as balaustradas laterais de pedra davam uma tonalidade clara e alvadia, onde destacavam os dourados da capela, os frontais roxos dos púlpitos, ao fundo dois reposteiros de um roxo mais escuro, e sob o dossel cor de violeta os ouros do trono. Um silêncio fresco e alto repousava. Diante do batistério um rapaz de joelhos, com um balde de zinco ao pé, esfregava o chão com uma rodilha, discretamente; dorsos de beatas, encapotados ou cobertos de xales tingidos, curvavam-se, aqui e além, diante de um altar; e um velho, de jaqueta de saragoça, prostrado no meio da igreja, rosnava rezas numa melopéia lúgubre; via-se a sua cabeça calva, as tachas enormes dos sapatos, e a cada momento, dobrando-se, batia no peito com desespero.
Luísa subiu ao altar-mor. Basílio impacientava-se, decerto, pobre rapaz! Perguntou então, timidamente, as horas a um sacristão que passava. O homem ergueu a sua face cor de cidra para uma janela na cúpula, e olhando Luísa de lado:
— Vai indo para as duas.
Para as duas! Era capaz de não esperar, Basílio! Veio-lhe um receio de perder a sua manhã amorosa, um desejo áspero de se achar no Paraíso, nos braços dele! E olhava vagamente os santos, as virgens trespassadas de espadas, os Cristos chagados - cheia de impaciências voluptuosas, revendo o quarto, a caminha de ferro, o pequeno bigode de Basílio!... Mas demorou-se, queria "fatigar o Conselheiro, deixá-lo ir". Quando pensou que ele teria partido, saiu devagarinho. - Viu-o logo à porta, direito, com as mãos atrás das costas, lendo a pauta dos jurados.
Começou imediatamente a louvar a sua devoção. Não entrara porque não quisera perturbar o seu recolhimento. Mas aprovava-a muito! A falta de religião era a causa de toda a imoralidade que grassava...
— E além disso é de boa educação. Vossa Excelência há de reparar que toda a nobreza cumpre...
Calou-se; aprumava a estatura, todo satisfeito de descer o Chiado com aquela linda senhora, tão olhada. Mesmo, ao passar por um grupo, curvou-se para ela misteriosamente; disse-lhe ao ouvido, sorrindo:
— Está um dia apreciável!
E ofereceu-lhe bolos à porta do Baltresqui. Luísa recusou.
— Sinto. Todavia acho muito sensata a regularidade nas comidas.
A sua voz vinha agora a Luísa com a impertinência de um zumbido; apesar de não fazer calor, abafava, picava-lhe o sangue no corpo; tinha vontade de deitar a correr, de repente; e todavia caminhava devagar, infeliz, como sonâmbula, cheia de necessidade de chorar.
Sem razão, ao acaso, entrou no Valente. Era hora e meia! Depois de hesitar pediu gravatas de fular a um caixeiro louro e jovial.
— Brancas? De cor? De riscas? Com pintinhas?
— Sim, verei, sortidas.
Não lhe agradavam. Desdobrava-as, sacudia-as, punha-as de lado; e olhava em roda vagamente, pálida... O caixeiro perguntou-lhe se estava incomodada: ofereceu-lhe água, qualquer coisa...
Não era nada; o ar é que lhe fazia bem; voltaria. Saiu. O Conselheiro, muito solícito, prontificou-se a acompanhá-la a uma boa farmácia tomar água de flor de laranja... Desciam então a Rua Nova do Carmo, e o Conselheiro ia afirmando que o caixeiro fora muito polido; não se admirava, porque no comércio havia filhos de boas famílias; citou exemplos.
Mas vendo-a calada:
— Ainda sofre?
— Não, estou bem.
— Temos dado um delicioso passeio!
Foram ao comprido do Rossio, até ao fim. Voltaram, atravessaram-no em diagonal. E pelo lado do Arco do Bandeira, aproximaram-se para a Rua do Ouro.
Luísa olhava em redor, aflita; procurava uma idéia, uma ocasião, um acontecimento - e o Conselheiro, grave a seu lado, dissertava. A vista do Teatro de D. Maria levara-o para as questões da arte dramática; tinha achado que a peça do Ernestinho era talvez demasiado forte. De resto só gostava de comédias. Não que se não entusiasmasse com as belezas de um Frei Luís de Sousa!, mas a sua saúde não lhe permitia as agitações fortes. Assim por exemplo...
Mas Luísa tivera uma idéia, e imediatamente:
Ah! Esquecia-me! Tenho de ir ao Vitry. Vou fazer chumbar um dente.
O Conselheiro, interrompido, fitou-a. E Luísa, estendendo-lhe a mão, com a voz rápida:
— Adeus, apareça, hem? - E precipitou-se para o portal do Vitry.
Subiu até ao primeiro andar, correndo, com os vestidos apanhados; parou, arquejando; esperou: desceu devagar, espreitou à porta... A figura do Conselheiro afastava-se direita, digna, para os lados das secretarias.
Chamou um trem.
— A quanto puder! - exclamou.
A carruagem entrou quase a galope na ruazinha do Paraíso. Figuras pasmadas apareceram à janela. Subiu, palpitante. A porta estava fechada - e logo a cancela do lado abriu-se, e a voz doce da patroa segredou:
— Já saiu. Há de haver meia hora.
Desceu. Deu a sua morada ao cocheiro, e atirando-se para o fundo do cupê, rompeu num choro histórico. Correu os estores para se esconder; arrancou o véu, rasgou uma luva, sentindo em si violências inesperadas. Então veio-lhe um desejo frenético de ver Basílio! Bateu nos vidros desesperadamente, gritou:
— Ao Hotel Central!
Porque estava num daqueles momentos em que os temperamentos sensíveis têm impulsos indomáveis; há uma delícia colérica em espedaçar os deveres e as conveniências; e a alma procura sofregamente o mal com estremecimentos de sensualidade!
A parelha estacou, resvalando à porta do hotel. O Sr. Basílio de Brito não estava, o senhor Visconde Reinaldo, sim.
— Bem, para casa, para onde eu disse!
O cocheiro bateu. E Luísa, sacudida por uma irritabilidade febril, insultava o Conselheiro, o estafermo, o imbecil! Maldizia a vida que lhos fizera conhecer, a ele e a todos os amigos da casa! Vinha-lhe uma vontade acre de mandar o casamento ao diabo, de fazer o que lhe viesse à cabeça!...
À porta não tinha troco para o cocheiro. - Espere! - disse, subindo furiosa. - Eu lhe mandarei pagar!
"Que bicha!, pensou o cocheiro.
Foi Joana que veio abrir; e quase recuou, vendo-a tão vermelha, tão excitada.
Luísa foi direita ao quarto: o cuco cantava três horas. Estava tudo desarrumado; vasos de plantas no chão, o toucador coberto com um lençol velho, roupa suja pelas cadeiras. E Juliana, com um lenço amarrado na cabeça, varria tranqüilamente, cantarolando.
— Então você ainda não arrumou o quarto! - gritou Luísa.
Juliana estremeceu àquela cólera inesperada.
— Estava agora, minha senhora!
— Que estava agora vejo eu! - rompeu Luísa. - São três horas da tarde e ainda o quarto neste estado!
Tinha atirado o chapéu, a sombrinha.
— Como a senhora costuma vir sempre mais tarde... - disse Juliana. E seus beiços faziam-se brancos.
— Que lhe importa a que horas eu venho? Que tem você com isso? A sua obrigação é arrumar logo que eu me levante. E não querendo, rua, fazem-se-lhe as contas!
Juliana fez-se escarlate e cravando em Luísa os olhos injetados:
— Olhe, sabe que mais? Não estou para a aturar! E arremessou violentamente a vassoura.
— Saia! - berrou Luísa. - Saia imediatamente! Nem mais um momento em casa!
Juliana pôs-se diante dela, e com palmadas convulsivas no peito a voz rouca:
— Hei de sair se eu quiser! Se eu quiser!
— Joana! - bradou Luísa.
Queria chamar a cozinheira, um homem, um policia, alguém! Mas Juliana descomposta, com o punho no ar, toda a tremer:
— A senhora não me faça sair de mim! A senhora não me faça perder a cabeça! - E com a voz estrangulada através dos dentes cerrados: - Olhe que nem todos os papéis foram pra o lixo!
Luísa recuou, gritou:
— Que diz você?
— Que as cartas que a senhora escreve aos seus amantes, tenho-as eu aqui! E bateu na algibeira, ferozmente.
Luísa fitou-a um momento com os olhos desvairados e caiu no chão, junto à causeuse, desmaiada.
A primeira impressão, mal-acordada, de Luísa foi que duas figuras, que não conhecia, estavam debruçadas sobre ela. Uma, a mais forte, afastou-se; o som frio de um frasco de vidro, pousado sobre o mármore do toucador, despertou-a. Sentiu então uma voz dizer abafadamente:
— Está muito melhor. Mas deu-lhe de repente, Sra. Juliana?
— De repente.
— Eu vi-a entrar tão afogueada...
Passos sutis pisaram o tapete; a voz de Joana perguntou-lhe junto do rosto:
— Está melhor, minha senhora?
Abriu os olhos; a percepção nítida das coisas foi-lhe voltando; estava estendida na causeuse; tinham-lhe desapertado o vestido, e havia no quarto um forte cheiro de vinagre. Ergueu-se sobre o cotovelo, devagar, com um olhar errante, vago:
— E a outra?...
— A Sra. Juliana? Foi-se deitar. Também se não achava bem. Foi de ver a senhora, coitada... Está melhorzinha?
Sentou-se. Sentia uma fadiga em todo o corpo; tudo no quarto lhe parecia oscilar brandamente:
— Pode ir, Joana, pode ir - disse.
— A senhora não precisa mais nada? Talvez um caldinho lhe fizesse bem...
Luísa, só, pôs-se a olhar em roda, espantada. Estava já tudo arrumado, as janelas cerradas. Uma luva ficara caída no chão; ergueu-se, ainda trôpega; foi apanhá-la; esteve a esticar-lhe os dedos maquinalmente, como sonâmbula, pô-la na gaveta do toucador. Alisou o cabelo; achava-se mudada, com outra expressão, como se fosse outra; e o silêncio do quarto impressionava-a, como extraordinário.
— Minha senhora - disse a voz tímida de Joana.
— Que é?
— É o cocheiro.
Luísa voltou-se, sem compreender:
— Que cocheiro?
— Um cocheiro; diz que a senhora que não tinha troco, que o mandou esperar...
— Ah!
E como a uma luz de gás que salta subitamente e alumia uma decoração, viu, num relance, toda a sua desgraça.
Ficou tão trêmula que mal podia abrir a gavetinha da cômoda:
Tinha-me esquecido, tinha-me esquecido... - balbuciava. Deu o dinheiro a Joana; e vindo cair sobre a causeuse:
— Estou perdida! - murmurou, apertando as mãos na cabeça.
Tudo descoberto! E representaram-se-lhe logo no espírito, com a intensidade de desenhos negros sobre um muro branco, o furor de Jorge, o espanto dos seus amigos, a indignação de uns, o escárnio dos outros; e estas imagens caindo com ruído na sua alma, como combustíveis numa fogueira, ateavam-lhe desesperadamente o terror.
Que lhe restava? - Fugir com Basílio!
Aquela idéia, a primeira, a única, apossou-se dela impetuosamente, traspassou-a - como a água de uma inundação que subitamente alaga um campo.
Ele tinha-lhe tantas vezes jurado que seriam tão felizes em Paris, no seu apartamento da Rua Saint Florentin! Pois bem, iria! Não levaria malas; poria no seu pequeno saco de marroquim alguma roupa branca, as jóias da mamã... E os criados? A casa? Deixaria uma carta a Sebastião para que viesse, fechasse tudo!... Levaria na viagem o vestido de riscadinho azul - ou o preto! Mais nada. O resto compra-lo-ia longe, noutras cidades...
— Se a senhora quer vir jantar... - disse Joana à porta do quarto.
Tinha posto um avental branco, e acrescentou:
A Sra. Juliana está deitada, diz que está com a dor, não pode servir à mesa.
— Já vou.
Tomou apenas uma colher de sopa, bebeu um grande gole de água; e erguendo-se:
— Que tem ela?
— Diz que é uma dor muito forte no coração.
Se morresse! Estava salva, ela! Podia ficar, então! E com uma esperança perversa:
— Vá ver, Joana, vá ver como está!
Tinha ouvido de tantas pessoas que morrem de uma dor! Iria logo ao quarto dela rebuscar-lhe a arca, apossar-se da carta! E não teria medo do silêncio da morte, fiem da lividez do cadáver...
— Está mais descansada, minha senhora - veio dizer a Joana - diz que logo que se levanta. Então a senhora não come mais nada? Credo!
— Não.
E entrou para o quarto, pensando: - "De que serve estar a imaginar coisas? Só me resta fugir...
Decidiu-se logo a escrever a Sebastião; mas não pode acertar com outras palavras além do começo, no alto, numa letra muito trêmula: "Meu amigo!"
Para que havia de escrever? Quando ao outro dia ela não voltasse, nem à tarde, nem à noite - as criadas, a outra, a infame! iriam logo a Sebastião. Era o íntimo da casa. Que espanto o dele! Imaginaria algum acidente, correria à Encarnação, depois à polícia, esperaria numa angústia até de madrugada! Todo o dia seguinte seriam outras esperanças de a ver chegar, decepções aterradas até que telegrafaria a Jorge! E a essa hora decerto, ela, encolhida no canto do vagão, rolaria, ao ruído ofegante da máquina, para um destino novo!...
Mas por que se afligia, por fim? Quantas invejariam a sua desgraça! O que havia de infeliz em abandonar a sua vida estreita entre quatro paredes, passada a examinar róis de cozinha e a fazer croché, e partir com um homem novo e amado, ir para Paris! Para Paris! Viver nas consolações do luxo, em alcovas de seda, com um camarote na Ópera!... Era bem tola em se afligir! Quase fora uma felicidade aquele "desastre"! Sem ele nunca teria tido a coragem de se desembaraçar da sua vida burguesa; mesmo quando um alto desejo a impelisse, haveria sempre uma timidez maior para a reter!
E depois, fugindo, o seu amor tornava-se digno! Seria só de um homem; não teria de amar em casa e amar fora de casa!
Veio-lhe mesmo a idéia de ir ter imediatamente com Basílio, acabar com aquilo por uma vez. Mas era tarde para ir ao hotel; temia as ruas escuras, a noite, e os bêbedos...