O Primo Basílio (11 page)

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Authors: Eça de Queirós

BOOK: O Primo Basílio
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Defronte as casas da Rua Ocidental tinham na sua fachada o reflexo claro das luzes do Passeio; algumas janelas estavam abertas, as cortinas de fazenda escuras destacavam sobre a claridade interior dos candeeiros. Luísa sentia como uma saudade de outras noites de verão, de serões recolhidos. Onde? Não se lembrava. O movimento então retraía-a; e encontrava em face, fitando-a numa atitude lúgubre, o sujeito de pêra longa. Debaixo do véu sentia a poeira arder-lhe nos olhos; em redor dela gente bocejava.

D. Felicidade propôs uma volta. Levantaram-se, foram rompendo devagar; as filas das cadeiras apertavam-se compactamente, e uma infinidade de faces a que a luz do gás dava o mesmo tom amarelado olhavam de um modo fixo e cansado, num abatimento de pasmaceira. Aquele aspecto irritou Basílio, e como era difícil andar lembrou - "que se fossem daquela sensaboria".

Saíram. Enquanto ele ia comprar os bilhetes, D. Felicidade, deixando-se quase cair num banco sob a folhagem de um chorão, exclamou aflita:

— Ai, filha! Estou que arrebento!

Passava a mão no estômago; tinha a face envelhecida.

— E o Conselheiro, que me dizes? Olha que já é pouca sorte! Hoje que eu vim ao Passeio...

Suspirou, abanando-se. E com o seu sorriso bondoso:

— É muito simpático, teu primo! E que maneiras! Um verdadeiro fidalgo. Que eles conhecem-se, filha!

Declarou-se muito fatigada, apenas saíram o portão. Era melhor tomarem um trem.

Basílio achava preferível subirem a pé até ao Largo do Loreto. A noite estava tão agradável! E o andar fazia bem à senhora D. Felicidade!

Depois diante do Martinho, falou em irem tomar neve; mas D. Felicidade receava a frialdade; Luísa tinha vergonha. Pelas portas do café abertas, viam-se sobre as mesas jornais enxovalhados; e algum raro indivíduo, de calça branca, tomava placidamente o seu sorvete de morango.

No Rossio, sob as árvores, passeava-se; pelos bancos, gente imóvel parecia dormitar; aqui e além pontas de cigarro reluziam; sujeitos passavam, com o chapéu na mão, abanando-se, o colete desabotoado; a cada canto se apregoava água fresca "do Arsenal"; em torno do largo, carruagens descobertas rodavam vagarosamente. O céu abafava - e na noite escura, a coluna da estátua de D. Pedro tinha o tom baço e pálido de uma vela de estearina colossal e apagada.

Basílio, ao pé de Luísa, ia calado. "Que horror de cidade!" - pensava. -"Que tristeza!" E lembrava-lhe Paris, de verão; subia, à noite, no seu faéton, os Campos Elísios devagar; centenares de vitórias descem, sobem rapidamente, com um trote discreto e alegre; e as lanternas fazem em toda a avenida um movimento jovial de pontos de luz; vultos brancos e mimosos de mulheres reclinam-se nas almofadas, balançadas nas molas macias; o ar em redor tem uma doçura aveludada, e os castanheiros espalham um aroma sutil. Dos dois lados, dentre os arvoredos, saltam as claridades violentas dos cafés cantantes, cheios do bruaá das multidões alegres, dos brios impulsivos das orquestras, os restaurantes flamejam; há uma intensidade de vida amorosa e feliz; e, para além, sai das janelas dos palacetes, através dos estores de seda, a luz sóbria e velada das existências ricas. Ah! Se lá estivesse! - Mas ao passar junto dos candeeiros olhava de lado para Luísa; o seu perfil fino sob o véu branco tinha uma grande doçura; o vestido prendia bem a curva do seu peito; e havia no seu andar uma lassidão que lhe quebrava a linha da cinta de um modo lânguido e prometedor.

Veio-lhe uma certa idéia, começou a dizer: Que pena que não houvesse em toda a Lisboa um restaurante, onde se pudesse ir tomar uma asa de perdiz e beber uma garrafa de champanhe frappe!

Luísa não respondeu. Devia ser delicioso - pensava. - Mas D. Felicidade exclamou:

— Perdiz, a esta hora!

— Perdiz ou outra qualquer coisa.

Fosse o que fosse, era para estourar! Credo!

Subiam pela Rua Nova do Carmo. Os candeeiros davam uma luz mortiça; as altas casas dos dois lados, apagadas, entalavam, carregavam a sombra; e a patrulha muito armada, descia passo a passo, sem ruído, sinistra e sutil.

Ao Chiado um garoto de barrete azul perseguiu-os com cautelas de loteria; a sua voz aguda e chorosa prometia a fortuna, muitos contos de réis. D. Felicidade ainda parou, com uma tentação... Mas uma troça de rapazes bêbedos que descia de chapéu na nuca, falando alto, aos tropeções, assustou muito as duas. Luísa encolheu-se logo contra Basílio; D. Felicidade enfiada agarrou-lhe ansiosamente o braço, quis-se meter numa carruagem; e até ao Loreto foi explicando o seu medo aos borrachos, com a voz atarantada, contando casos, facadas, sem largar o braço de Basílio. Da fileira de tipóias, ao lado das grades da Praça de Camões, um cocheiro lançou logo a sua caleche descoberta, de pé na almofada apanhando confusamente as rédeas, com grandes chicotadas na parelha, excitado, gritando:

— Pronto, meu amo, pronto!

Demoraram-se um momento ainda conversando. Um homem então passou, rondou - e Luísa desesperada reconheceu os olhos acarneirados do sujeito da pêra.

Entraram para a caleche. Luísa ainda se voltou para ver Basílio imóvel no largo, com o seu chapéu na mão; depois acomodou-se, pôs os pezinhos no outro assento e balançada pelo trote largo viu passar, calada, as casas apagadas da Rua de São Roque, as árvores de São Pedro de Alcântara, as fachadas estreitas do Moinho de Vento, os jardins adormecidos da Patriarcal. A noite estava imóvel, de um calor mole, e desejava, sem saber por que, rolar assim sempre, infinitamente, entre ruas, entre grades cheias de folhagem de quintas nobres, sem destino, sem cuidados, para alguma coisa de feliz que não distinguia bem! Um grupo defronte da Escola ia tocando o Fado do Vimioso; aqueles sons entraram-lhe na alma como um vento doce, que fazia agitar brandamente muitas sensibilidades passadas, suspirou baixo.

— Um suspirozinho que vai para o Alentejo - disse D. Felicidade, tocando-lhe no braço.

Luísa sentiu todo o sangue abrasar-lhe o rosto. Davam onze horas quando entrou em casa.

Juliana veio alumiar. - O chá estava pronto, quando a senhora quisesse...

Luísa subiu daí a pouco com um largo roupão branco, muito fatigada; na voltaire; sentia vir-lhe uma sonolência; a cabeça pendia-lhe; cerravas as pálpebras... E Juliana tardava tanto com o chá! Chamou-a. Onde estava? Credo!

Tinha descido, pé ante pé, ao quarto de Luísa. E aí tomando o vestido, as saias engomadas que ela despira e atirara para cima da causeuse, desdobrou-as, examinou-as, e com uma certa idéia, cheirou-as! Havia o vago aroma de um corpo lavado e quente, com uma pontinha de suor e de água-de-colônia. Quando a sentiu chamar, impacientar-se em cima, subiu, correndo. - Fora abaixo dar uma arrumadela. Era o chá? Estava pronto...

E entrando com as torradas:

— Veio aí o Sr. Sebastião, haviam de ser nove horas...

— Que lhe disse?

— Que a senhora tinha saído com a senhora D. Felicidade. Como não sabia, não disse para onde.

E acrescentou:

— Esteve a conversar comigo, o Sr. Sebastião... Esteve a conversar mais de meia hora!...

Luísa recebeu, na manhã seguinte, da parte de Sebastião, um ramo de rosas, magenta-escuro, magníficas. Cultivava-as ele na quinta de Almada, e chamavam-se rosas D. Sebastião. Mandou-as pôr nos vasos da sala; e como o dia estava encoberto, de um calor baixo e sufocante:

— Olhe - disse a Juliana - abra as janelas.

— "Bem" - pensou Juliana - "temos cá o melro."

O melro veio com efeito às três horas. Luísa estava na sala, ao piano.

— Está ali o sujeito do costume - foi dizer Juliana.

Luísa voltou-se corada, escandalizada da expressão:

— Ah! Meu primo Basílio? Mande entrar.

E chamando-a:

— Ouça, se vier o Sr. Sebastião, ou alguém, que entre.

Era o primo! O sujeito, as suas visitas perderam de repente para ela todo o interesse picante. A sua malícia cheia, enfunada até aí, caiu, engelhou-se como uma vela a que falta o vento. Ora, adeus! Era o primo!

Subiu à cozinha, devagar - lograda.

— Temos grande novidade, Sra. Joana! O tal peralta é primo. Diz que é o primo Basílio.

E com um risinho:

— É o Basílio! Ora o Basílio! Sai-nos primo à última hora! O diabo tem graça!

— Então que havia de o homem ser senão parente? - observou Joana.

Juliana não respondeu. Quis saber se estava o ferro pronto, que tinha uma carga de roupa para passar! E sentou-se à janela, esperando. O céu baixo e pardo pesava, carregado de eletricidade; às vezes uma aragem súbita e fina punha nas folhagens dos quintais um arrepio trêmulo.

— "É o primo!" - refletia ela. - "E só vem então quando o marido se vai. Boa! E fica-se toda no ar quando ele sai; e é roupa branca e mais roupa branca, e roupão novo, e tipóia para o passeio, e suspiros e olheiras! Boa bêbeda! Tudo fica na família!"

Os olhos luziam-lhe. Já se não sentia tão lograda. Havia ali muito "para ver e escutar". E o ferro, estava pronto?

Mas a campainha embaixo, tocou.

— Boa! Isto agora é um fadário! Estamos na casa do despacho!

Desceu; e exclamou logo, vendo Julião com um livro debaixo do braço:

— Faz favor de entrar, Sr. Julião! A senhora está com o primo, mas diz que mandasse entrar!

Abriu a porta da sala bruscamente, de surpresa.

— Está aqui o Sr. Julião - disse com satisfação.

Luísa apresentou os dois homens.

Basílio ergueu-se do sofá languidamente, e, num relance, percorreu Julião desde a cabeleira desleixada até às botas malengraxadas, com um olhar quase horrorizado.

— "Que pulha!" - pensou.

Luísa, muito fina, percebeu, e corou, envergonhada de Julião.

Aquele homem de colarinho enxovalhado e com um velho casaco de pano preto malfeito - que idéia daria a Basílio das relações, dos amigos da casa! Sentia já o seu chique diminuído. E instintivamente, a sua fisionomia tornou-se muito reservada - como se semelhante visita a surpreendesse! Semelhante toalete a indignasse!

Julião percebeu o constrangimento dela; disse, já embaraçado, ajeitando a luneta:

— Passei por aqui por acaso, entrei a saber se há algumas notícias de Jorge...

— Obrigada. Sim, tem escrito. Está bem...

Basílio, recostado no sofá, como um parente intimo, examinava a sua meia de seda bordada de estrelinhas escarlates, e cofiava indolentemente o bigode, arrebitando um pouco o dedo mínimo - onde brilhavam, em dois grossos anéis de ouro, uma safira e um rubi.

A afetação da atitude, o reluzir das jóias irritaram Julião.

Quis mostrar também a sua intimidade, os seus direitos; disse:

— Eu não tenho vindo fazer-lhe um bocado de companhia, porque tenho estado muito ocupado...

Luísa acudiu para desautorizar logo aquela familiaridade:

— Eu também não me tenho achado bem. Não tenho recebido ninguém - a o ser meu primo, naturalmente!

Julião sentiu-se renegado! E todo vermelho, de surpresa, de indignação, - a balançar a perna, calado, com o livro sobre o joelho; como a calça era curta, via-se quase o elástico esfiado das botas velhas.

Houve um silêncio difícil.

— Bonitas rosas! - disse enfim Basílio, preguiçosamente.

— Muito bonitas! - respondeu Luísa.

Estava agora compadecida de Julião; procurava uma palavra; disse-lhe enfim muito precipitadamente:

— E que calor! É de morrer! Tem havido muitas doenças?

— Colerinas - respondeu Julião. - Por causa das frutas. Doenças de ventre.

Luísa baixou os olhos. Basílio então começou a falar da Viscondessinha de Azeias; tinha-a achado acabada; e que era feito da irmã, da grande?

Aquela conversação sobre fidalgas que ele não conhecia isolava mais Julião; sentia o suor umedecer-lhe o pescoço; procurava um dito, uma ironia, uma agudeza; e maquinalmente abria e fechava o seu grosso livro de capa amarela.

— É algum romance? - perguntou-lhe Luísa.

— Não. É o tratado do Dr. Lee sobre doenças do útero.

Luísa fez-se escarlate; Julião também, furioso da palavra que lhe escapara. E Basílio, depois de sorrir, perguntou por uma certa D. Rafaela Grijó, que costumava ir à Rua da Madalena, que usava luneta, e tinha um cunhado gago...

— Morreu-lhe o marido. Casou com o cunhado.

— Com o gago?

— Sim. Tem um filhito dele, gago também.

— Que conversação, em família! E a D. Eugênia, a de Braga?

Juilão, exasperado, ergueu-se; e com uma voz de garganta seca:

— Estou com pressa, não me posso demorar. Quando escrever a Jorge, os meus recados, hem?

Abaixou bruscamente a cabeça a Basílio. Mas não achava o chapéu; tinha rolado para debaixo de uma cadeira. Embrulhou-se no reposteiro, topou violentamente contra a porta fechada, e saiu enfim desesperado, desejando vingar-se, odiando Luísa, Jorge, o luxo, a vida - trasbordando agora de ironias, de ditos, de réplicas. Devia-os ter achatado, o asno e a tola... E não lhe acudira nada!

Mas apenas ele tinha fechado a cancela, Basílio pôs-se de pé, e cruzando os braços:

— Quem é esse pulha?

Luísa corou muito; balbuciou:

— É um rapaz médico...

— É uma criatura impossível, é uma espécie de estudante.

— Coitado, não tem muitos meios...

Mas não era necessário ter meios para escovar o casaco e limpar a caspa! Não devia receber semelhante homem! Envergonha uma casa. Se seu marido gostava dele, que o recebesse no escritório!...

Passeava pela sala, excitado, com as mãos nos bolsos, fazendo tilintar o dinheiro e as chaves.

— São frescos os amigos da casa!... - continuou. - Que diabo! Tu não foste educada assim. Nunca tiveste gente deste gênero na Rua da Madalena.

Não tivera; e pareceu-lhe que as ligações do casamento lhe tinham trazido um pouco o plebeísmo das convivências. Mas um respeito pelas opiniões, pelas de Jorge fez-lhe dizer:

— Diz que tem muito talento...

— Era melhor que tivesse botas.

Luísa, por cobardia, concordou.

— Também o acho esquisito! - disse.

— Horrível, minha filha!

Aquela palavra fez-lhe bater o coração. Era assim que ele lhe chamava, houve um momento de silêncio; e a campainha da porta retiniu fortemente.

Luísa ficou assustada. Jesus! Se fosse Sebastião! Basílio achá-lo-ia ainda mais reles. Mas Juliana veio dizer:

— O Sr Conselheiro. Mando entrar?

— Decerto - exclamou.

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