O Primo Basílio (15 page)

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Authors: Eça de Queirós

BOOK: O Primo Basílio
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Foi ela no dia seguinte que falou do campo. Queixou-se do continuo calor, da seca de Lisboa. Como devia estar lindo em Sintra!

— És tu que não queres - acudiu ele. - Podíamos fazer um passeio adorável.

Mas tinha medo, podiam ver...

— O quê! Num cupê fechado? Com os estores descidos?

Mas então era pior que estar numa sala; era abafar numa boceta! Mas não! Iam a uma quinta. Podiam ir às Alegrias, à quinta de um amigo que estava em Londres. Só viviam lá os caseiros; era ao pé dos Olivais; era lindo! Belas ruas de loureiros, sombras adoráveis. Podiam levar gelo, champanhe...

— Vem! - disse bruscamente, tomando-lhe as mãos.

Ela corou. - Talvez. No domingo veria.

Basílio conservava-lhe as mãos presas. Os seus olhos encontraram-se, umedeceram-se. Ela sentiu-se muito perturbada: desprendeu as mãos; foi abrir as vidraças ambas, dar à sala uma claridade larga como uma publicidade; sentou-se numa cadeira ao pé do piano, receando a penumbra, o sofá, todas as cumplicidades; e pediu-lhe que cantasse alguma coisa, porque já temia as palavras, tanto como os silêncios! Basílio cantou a Medjé, a melodia de Gounod, tão sensual e perturbadora. Aquelas notas quentes passavam-lhe na alma como bafos de uma noite elétrica. E quando Basílio saiu, ficou sentada, quebrada, como depois de um excesso.

Sebastião tinha estado nos últimos três dias em Almada, na Quinta do onde trazia obras.

Voltara na segunda-feira cedo, e, pelas dez horas, sentado no poial da janela de jantar que abria para o terraçozinho, esperava o seu almoço, brincando com o Rolim - o seu gato, amigo e confidente da ilustre Vicência, nédio como um prelado, ingrato como um tirano.

A manhã começava a aquecer; o quintal estava já cheio de sol; na água do tanque, sob a parreira, claridades espelhadas e trêmulas faiscavam. Nas duas gaiolas os canários cantavam estridentemente.

A tia Joana, que andava a arranjar a mesa do almoço muito calada, pôs-se então a dizer com a sua vozinha arrastada e minhota:

— Ora, esteve aí ontem a Gertrudes, a do doutor, com uns palratórios, com umas tontices!...

— A respeito de quê, tia Joana? - perguntou Sebastião.

— A respeito de um rapaz, que diz que vai agora todos os dias à casa da Luisinha.

Sebastião ergueu-se logo:

— Que disse ela, tia Joana?

A velha assentava a toalha devagar com a sua mão gorducha espalmada:

— Esteve ai a palrar. Quem seria, quem não seria? Diz que é um perfeito rapaz. Vem todos os dias. Vem de trem, vai de trem... No sábado, que estivera até quase à noitinha. E cantou-se na sala, diz que uma voz que nem no teatro...

Sebastião interrompeu-a, impaciente:

— É o primo, tia Joana. Então quem havia de ser? É o primo que chegou do Brasil.

A tia Joana teve um bom sorriso.

— Eu logo vi que era coisa de parente. Pois diz que é um perfeito rapaz! E todo janota!

E saindo para a cozinha, devagar:

— Eu logo vi que era parente, logo disse!...

Sebastião almoçou inquieto. Positivamente a vizinhança já se punha a mexericar, a comentar! Estava-se a armar um escândalo! - E, assustado, decidiu-se logo a ir consultar Julião.

Descia a Rua de São Roque para casa dele, quando o viu, que subia devagar pela sombra, com um rolo de papel debaixo do braço, uma calça branca enxovalhada, o ar suado.

— Ia a tua casa, homem! - disse Sebastião logo.

Julião estranhou a excitação desusada da sua voz.

Havia alguma novidade? Que era?

— Uma do diabo! - exclamou, baixo, Sebastião.

Estavam parados ao pé da confeitaria. Na vidraça, por trás deles, emprateleirava-se uma exposição de garrafas de malvasia com os seus letreiros muito coloridos, transparências avermelhadas de gelatinas, amarelidões enjoativas de doces de ovos, e queques de um castanho-escuro tendo espetados cravos tristes de papel branco ou cor-de-rosa. Velhas natas lívidas amolentavam-se no oco dos folhados; ladrilhos grossos de marmelada esbeiçavam-se ao calor; as empadinhas de marisco aglomeravam as suas crostas ressequidas. E no centro, muito proeminente numa travessa, enroscava-se uma lampreia de ovos medonha e bojuda, com o ventre de um amarelo ascoroso, o dorso malhado de arabescos de açúcar, a boca escancarada; na sua cabeça grossa esbugalhavam-se dois horríveis olhos de chocolates; os seus dentes de amêndoa ferravam-se numa tangerina de chila; e em torno do monstro espapado moscas esvoaçavam.

— Vamos ali para o café - disse Julião. - Aqui na rua arde-se!

— Tenho estado apoquentado - ia dizendo Sebastião. - Muito apoquentado! Quero falar-te.

No café o papel azul-ferrete e as meias portas fechadas abatiam a áspera intensidade da luz, davam uma frescura calada.

Foram-se sentar ao fundo. Do outro lado da rua as fachadas muito caiadas brilhavam com uma radiação faiscante. Por trás do balcão, onde reluziam garrafas de cristal, um criado de jaquetão, estremunhado e esguedelhado, cabeceava de sono. Um pássaro chilreava dentro; sentia-se o bater espaçado das bolas do bilhar através de uma porta de baeta verde; às vezes o pregão de um cangalheiro na rua sobressaia, e - todos estes sons, por momentos se perdiam no ruído forte do descer de um trem travado.

Defronte deles um sujeito de ar debochado lia um jornal; as suas melenas grisalhas colavam-se a um crânio amarelado; o bigode tinha tons queimados do cigarro; e das noitadas ficara-lhe uma vermelhidão inflamada nas pálpebras. De vez em quando erguia preguiçosamente a cabeça, atirava para o chão areado um jato escuro de saliva, dava uma sacudidela triste ao jornal e tornava a fitá-lo com ar infeliz. Quando os dois entraram e pediram carapinhadas, abaixou-lhes gravemente a cabeça.

Mas o que é então? - perguntou logo Julião. Sebastião chegou-se mais para ele:

— É por causa lá da nossa gente. Por causa do primo - disse baixo.

E acrescentou:

— Tu viste-lo, hem?

A lembrança repentina da sua humilhação na sala de Luísa trouxe um rubor de Juílão. Mas muito orgulhoso, disse secamente:

— Vi

— E então?

— Pareceu-me um asno! - exclamou, não se contendo.

— É um extravagante - disse com terror Sebastião. - Não te pareceu, hem?

— Pareceu-me um asno - repetiu. - Umas maneiras, uma afetação, um alambicado, a olhar muito para as meias, umas meias ridículas de mulher...

E com um certo sorriso azedado:

— Eu mostrei-lhe francamente as minhas botas. Estas - disse, apontando para os botins mal - engraxados -, tenho muita honra nelas; são de quem trabalha...

Porque publicamente costumava gloriar-se de uma pobreza, que intimamente não o cessava de o humilhar.

E remexendo devagar a sua carapinhada:

— Uma besta! - resumiu.

— Ti sabes que ele foi namoro da Luísa? - disse Sebastião, baixo, como assustado da gravidade da confidência.

E respondendo logo ao olhar surpreendido de Julião:

— Sim. Ninguém o sabe. Nem Jorge. Eu soube-o há pouco, há meses. Foi. Estiveram a casar. Depois o pai faliu, ele foi para o Brasil, e de lá escreveu a romper o casamento.

Julião sorriu, e encostando a cabeça à parede:

— Mas isso é o enredo da Eugênia Grandet, Sebastião! Estás-me a contar o romance de Balzac! Isso é a Eugênia Grandet!

Sebastião fitou-o espantado.

— Ora! Não se pode falar sério contigo. Dou-te a minha palavra de honra! - acrescentou vivamente.

— Vá, Sebastião, vá, dize.

Houve um silêncio. O sujeito calvo, agora, contemplava o estuque do teto sujo de fumo dos cigarros e do pousar das moscas; e, com a mão sapuda, de tom pegajoso, cofiava amorosamente as repas. No bilhar vozes altercavam.

Sebastião então, como tomado de uma resolução, disse bruscamente:

— E agora vai lá todos os dias, não sai de lá!

Julião afastou-se na banqueta e encarou-o:

— Tu queres-me dar a entender alguma coisa, Sebastião?

E com uma vivacidade quase jovial:

— O primo atira-se?

Aquela palavra escandalizou Sebastião.

— Ó Julião! - E severamente: - Com essas coisas não se brinca!

Julião encolheu os ombros.

— Mas está claro que se atira! - exclamou. - És de bom tempo ainda! Está claro que sim! Namorou-a solteira, agora quere-a casada!

— Fala baixo - acudiu Sebastião.

Mas o criado dormitava, e o sujeito calvo tinha recaído na sua leitura fúnebre.

Julião baixou a voz:

— Mas é sempre assim, Sebastião. O primo Basílio tem razão; quer o prazer sem a responsabilidade!

E quase ao ouvido dele:

— É de graça, amigo Sebastião! É de graça! Tu não imaginas que influência isto tem no sentimento!

Riu-se. Estava radioso; as palavras, as pilhérias vinham-lhe com abundância:

— Há um marido que a veste, que a calça, que a alimenta, que a engoma, que a vela se está doente; que a atura se ela está nervosa; que tem todos os encargos, todos os tédios, todos os filhos, todos, todos os que vierem, sabes a lei... Por conseqüência o primo não tem mais que chegar, bater ao ferrolho, encontra-a asseada, fresca, apetitosa à custa do marido, e...

Teve um risinho, recostou-se com uma grande satisfação, enrolando deliciosamente o cigarro, regozijando-se no escândalo.

— É ótimo! - acrescentou. - Todos os primos raciocinam assim. Basílio é primo, logo... Sabes o silogismo, Sebastião! Sabes o silogismo, menino! - gritou, dando-lhe uma palmada na perna.

— É o diabo - murmurou Sebastião cabisbaixo.

Mas revoltando-se contra a suspeita que o ia dominando:

— Mas tu supões que uma rapariga de bem...

— Eu não suponho nada! - acudiu Julião.

— Fala baixo, homem!

— Eu não suponho nada - repetiu Julião baixinho. - Eu afirmo o que ele faz. Agora ela...

E acrescentou com secura:

— Como é uma rapariga honesta...

— Se é! - exclamou Sebastião, batendo uma punhada na pedra da mesa.

— Pronto! - cantou arrastadamente o moço.

O velho calvo ergueu-se logo; mas vendo que o criado se recolhia ao balcão bocejando, e que os dois continuavam a remexer a sua carapinhada, encostou os cotovelos à mesa, salivou para longe, e puxando o jornal deixou-lhe cair em cima um olhar desolado.

Sebastião disse, então, com tristeza:

— A questão não é por ela. A questão é pela vizinhança.

Ficaram um momento calados. A altercação de vozes no bilhar crescia.

— Mas - disse Julião, como saindo de uma reflexão - a vizinhança?

— Sim, homem! Vêem entrar para lá o rapaz. Vem de tipóia; faz um escândalo na rua. Já se fala. Já vieram com mexericos à tia Joana. Há dias encontrei o Neto que reparou. O Cunha também. O homem dos trastes, embaixo, não se faz nada que ele não dê fé; são umas línguas de tremer. Há dias ia eu a passar quando o primo se apeou da carruagem para entrar, e foram logo conciliábulos na rua, olhadelas para a janela, o diabo! Vai lá todos os dias. Sabem que o Jorge está no Alentejo... Está duas e três horas. É muito sério, é muito sério!

— Mas ela então é tola!

— Não vê o mal...

Julião encolheu os ombros, duvidando.

Mas a porta de baeta do bilhar abriu-se; um homem hercúleo, de bigode negro, muito escarlate, saiu bruscamente, e parando, segurando a porta aberta, gritou para dentro:

— E fique sabendo que havia de encontrar homem!

Uma voz grossa, do bilhar, respondeu-lhe uma obscenidade.

O sujeito hercúleo atirou a porta, furioso; atravessou o café resfolegando, apoplético; um rapaz chupado, de jaquetão de inverno e calça branca, seguia-o, com um ar gingado.

— O que eu devia fazer - exclamava o agigantado, brandindo o punho - era quebrar a cara àquele pulha!

O rapaz chupado dizia, com doçura e servilismo, bamboleando-se:

— Questões não servem para nada, Sô Correia!

— É que sou muito prudente - berrou o hercúleo. - É que me lembro tenho mulher e filhos! Se não bebia-lhe o sangue!

E saindo, a sua voz roncante perdeu-se no rumor da rua.

O criado muito pálido, tremia dentro do balcão; e o sujeito calvo, que erguera a cabeça, teve um sorriso de tédio, e retomou tristemente o jornal.

Sebastião, então, disse refletindo:

— Não te parece que seria bom avisá-la?

Julião encolheu os ombros, soltou uma baforada de fumo.

— Dize alguma coisa! - implorou Sebastião. - Tu não ias falar-lhe, hem?

— Eu? - exclamou Julião com um aspecto que repelia a idéia. - Eu! Estás doido!

— Mas que te parece, enfim?

E a voz de Sebastião tinha quase uma aflição.

Julião hesitou:

— Vai, se queres. Diz-lhe que se tem reparado... Enfim, eu não sei, meu amigo!

E pôs-se a chupar o seu cigarro.

Aquele mutismo afetou Sebastião. Disse com desconsolação:

— Homem, vim-te pedir um conselho...

— Mas que diabo queres tu? - E a voz de Julião irritava-se. - A culpa é dela. É dela! - insistiu, vendo o olhar de Sebastião. - É uma mulher de vinte e cinco anos, casada há quatro, deve saber que se não recebe todos os dias um peralvilho, numa rua pequena, com a vizinhança a postos! Se o faz, é porque lhe agrada.

— Ó Julião! - disse muito severamente Sebastião.

E dominando-se, com a voz comovida:

— Não tens razão, não tens razão!

Calou-se muito magoado.

Julião levantou-se.

— Amigo Sebastião, eu digo o que penso; tu fazes o que entendes.

Chamou o criado.

— Deixa - disse Sebastião precipitadamente, pagando.

Iam sair. Mas então o sujeito calvo, atirando o jornal, arremessou-se para a porta, abriu-a, curvou-se, e estendeu a Sebastião um papel enxovalhado.

Sebastião, surpreendido, leu alto, maquinalmente:

— "O abaixo-assinado, antigo empregado da nação, reduzido a miséria..."

— Fui íntimo amigo do nobre Duque de Saldanha! - gemeu chorosamente, com uma rouquidão, o sujeito calvo.

Sebastião corou, cumprimentou, meteu-lhe na mão duas placas de cinco tostões, discretamente.

O sujeito dobrou profundamente o espinhaço e declamou com uma voz cava:

— Mil agradecimentos a Vossa Excelência, senhor conde!

Capítulo cinco

 

A manhã estava abrasadora. Um pouco depois do meio-dia, Joana, estirada numa velha cadeira de vime da Ilha da Madeira que havia na cozinha, dormitava a sesta. Como madrugava muito, àquela hora da calma vinha-lhe sempre uma quebreira.

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