O Primo Basílio (12 page)

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Authors: Eça de Queirós

BOOK: O Primo Basílio
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E a alta figura de Acácio adiantou-se, com as bandas do casaco de alpaca deitadas para trás, a calça branca muito engomada caindo sobre os sapatos de entrada baixa, de laço.

Apenas Luísa lhe apresentou o primo Basílio, disse logo, respeitoso:

— Já sabia que Vossa Excelência tinha chegado; vi-o nas interessantes notícias do nosso high life. E do nosso Jorge?

Jorge estava em Beja... Diz que se aborrece muito...

Basílio, mais amável, deixou cair:

— Eu realmente não tenho a menor idéia do que se possa fazer em Beja. Deve ser horroroso!

O Conselheiro, passando sobre o bigode a sua mão branca onde destacava o anel de armas, observou:

— É todavia a capital do distrito!

Mas se já em Lisboa se não podia fazer nada, e era a capital do reino! - E Basílio repuxava, todo recostado, o punho da camisa. - Morria-se positivamente de pasmaceira.

Luísa, muito contente da afabilidade de Basílio, pôs-se a rir:

— Não digas isso diante do Conselheiro. É um grande admirador de Lisboa.

Acácio curvou-se:

— Nasci em Lisboa, e aprecio Lisboa, minha rica senhora.

E com muita bonomia:

— Conheço porém que não é para comparar aos Parises, às Londres, às Madris...

— Decerto - fez Luísa.

O Conselheiro continuou com pompa:

— Lisboa porém tem belezas sem igual! A entrada ao que me dizem (eu nunca entrei a barra) é um panorama grandioso, rival das Constantinoplas e das Nápoles. Digno da pena de um Garrett ou de um Lamartine! Próprio para inspirar um grande engenho!...

Luísa, receando citações ou apreciações literárias, interrompeu-o; perguntou-lhe o que tinha feito. Tinham estado domingo no Passeio, ela e D. Felicidade; tinham esperado vê-lo, e nada!

Nunca ia ao Passeio, ao domingo - declarou. - Reconhecia que era muito agradável, mas a multidão entontecia-o. Tinha notado - e a sua voz tomou o tom espaçado de uma revelação - tinha notado que muita gente, num local, causa vertigens aos homens de estudo. De resto queixou-se da sua saúde e do peso dos seus trabalhos. Andava compilando um livro e usando as águas de Vichy.

— Podes fumar - disse Luísa de repente, sorrindo, a Basílio. - Queres lume?

Ela mesma lhe foi buscar um fósforo, toda ligeira, feliz. Tinha um vestido claro, um pouco transparente, muito fresco. Os seus cabelos pareciam mais louros, a sua pele mais fina.

Basílio soprou o fumo do charuto, e declarou muito reclinado:

— O Passeio ao domingo é simplesmente idiota!...

O Conselheiro refletiu e respondeu:

— Não serei tão severo, Sr. Brito! - Mas parecia-lhe que com efeito antigamente era uma diversão mais agradável. - Em primeiro lugar - exclamou com muita convicção, endireitando-se - nada, mas nada, absolutamente nada pode substituir a charanga da Armada! - Além disso havia a questão dos preços... Ah! Tinha estudado muito o assunto! Os preços diminutos favoreciam a aglomeração das classes subalternas... Que longe do seu pensamento lançar desdouro nessa parte da população... As suas idéias liberais eram bem conhecidas. - Apelo para a senhora D. Luísa! - disse. - Mas enfim, sempre era mais agradável encontrar uma roda escolhida! Em quanto a si nunca ia ao Passeio. Talvez não acreditassem, mas nem mesmo quando havia fogo de vistas! Nesses dias, sim, ia ver por fora das grades. Não por economia! Decerto não. Não era rico, mas podia fazer face a essa contribuição diminuta. Mas é que receava os acidentes! É que os receava muito! Contou a história de um sujeito, cujo nome lhe escapava, a quem uma cana de foguete furara o crânio. - E além disso nada mais fácil que cair uma fagulha acesa na cara, num paletó novo... - É conveniente ter prudência - resumiu, compenetrado, limpando os beiços com o lenço de seda da Índia muito enrolado.

Falaram então da estação; muita gente fora para Sintra; de resto, Lisboa no verão era tão secante!... E o Conselheiro declarou que Lisboa só era imponente verdadeiramente imponente, quando estavam abertas as câmaras e São Carlos!

— Que estavas tu a tocar quando eu entrei? - perguntou Basílio.

O Conselheiro acudiu logo:

— Se estavam fazendo música, por quem são... Sou um velho assinante de São Carlos, há dezoito anos...

Basílio interrompeu-o:

— Toca?

— Toquei. Não o oculto. Em rapaz fui dado à flauta. E acrescentou, com um gesto benévolo:

— Rapaziadas!... Alguma novidade, o que estava tocando, D. Luísa?

— Não! Uma música muito conhecida, já antiga; a Filha do pescador, de Meyerbeer. Tenho a letra traduzida.

Tinha cerrado as vidraças, sentara-se ao piano.

O Sebastião é que toca isto bem, não é verdade, Conselheiro?

— O nosso Sebastião - disse o Conselheiro com autoridade - é um rival dos Thalbergs e dos Liszts. Conhece o nosso Sebastião? - perguntou a Basílio.

— Não, não conheço.

— Uma pérola!

Basílio tinha-se aproximado do piano devagar, frisando o bigode.

Tu ainda cantas? - perguntou4he Luísa, sorrindo.

— Quando estou só.

Mas o Conselheiro pediu-lhe logo "um trecho". Basílio ria. Tinha medo de escandalizar um velho assinante de São Carlos...

O Conselheiro animou-o; disse mesmo paternalmente:

— Coragem Sr. Brito, coragem! Luísa então preludiou.

E Basílio soltou logo a voz, cheia, bem timbrada, de barítono; as suas notas altas faziam a sala sonora. O Conselheiro, direito na poltrona escutava concentrado; a sua testa, franzida num vinco, parecia curvar-se sob uma responsabilidade de juiz; e as lunetas defumadas destacavam, com reflexos escuros, naquela fisionomia de calvo, que o calor tornava mais pálida.

Basílio dizia com uma melancolia grave a primeira frase, tão larga, da canção:

— Igual ao mar sombrio
Meu coração profundo...

Um poeta, com uma dedicação obscura, traduzira a letra no Almanaque das Senhoras; Luísa pela sua própria mão a tinha copiado nas entrelinhas da música. E Basílio debruçado sobre o papel sempre torcendo as pontas do bigode:

— Tem tempestades, cóleras,
Mas pérolas no fundo!

Os olhos largos de Luísa afirmavam-se para a música - ou a espaços, com um movimento rápido, erguiam-se para Basílio. Quando, na nota final, prolongada como a reclamação de um amor suplicante, Basílio soltou a voz de um modo apelativo:

— Vem! Vem
Pousar, ó doce amada,
Teu peito contra o meu...

os seus olhos fixaram-se nela com uma significação de tanto desejo que o peito de Luísa arfou, os seus dedos embrulharam-se no teclado.

O Conselheiro bateu as palmas.

— Uma voz admirável! - exclamava. - Uma voz admirável!

Basílio dizia-se envergonhado.

— Não, senhor, não, senhor! - protestou Acácio, levantando-se. - Um excelente órgão! Direi, o melhor órgão da nossa sociedade!

Basílio riu. Uma vez que tinha sucesso, então ia dizer-lhes uma modinha brasileira da Bahia. Sentou-se ao piano, e depois de ter preludiado uma melodia muito balançada, de um embalado tropical cantou:

— Sou negrinha, mas meu peito
Sente mais que um peito branco.

E interrompendo-se:

— Isto fazia furor nas reuniões da Bahia quando eu parti.

Era a história de uma "negrinha" nascida na roça, e que contava, com lirismos de almanaque, a sua paixão por um feitor branco.

Basílio parodiava o tom sentimental de alguma menina baiana; e a sua voz tinha uma preciosidade cômica, quando dizia o ritornelo choroso:

— E a negra pra os mares
Seus olhos alonga;
No alto coqueiro
Cantava a araponga.

O Conselheiro achou "delicioso"; e, de pé na sala, lamentou a propósito da cantiga a condição dos escravos. Que lhe afirmavam amigos do Brasil que os negros eram muito bem tratados. Mas enfim a civilização era a civilização! E a escravatura era um estigma! Tinha todavia muita confiança no imperador...

— Monarca de rara ilustração... - acrescentou respeitosamente.

Foi buscar o seu chapéu, e colando-lhe as abas ao peito, curvando-se, jurou que - havia muito tempo não tinha passado uma manhã tão completa. De resto nada havia como a boa conversação e a boa música...

— Onde está Vossa Excelência alojado, Sr. Brito?

Pelo amor de Deus! Que não se incomodasse! Estava no Hotel Central.

Não havia considerações que o impedissem de cumprir o seu dever - Cumpri-lo-ia! Ele era uma pessoa inútil, a senhora D. Luísa bem o sabia - Mas se necessitar alguma coisa, uma informação, uma apresentação nas regiões oficiais, licenças para visitar algum estabelecimento público, creia que me tem às suas ordens!

E conservando na sua mão a mão de Basílio:

— Rua do Ferregial de Cima, número três, terceiro. O modesto tugúrio de um eremita.

Tomou a curvar-se diante de Luísa:

— E quando escrever ao nosso viajante, que faço sinceros votos pela prosperidade dos seus empreendimentos. Por quem é! Criado de Vossa Excelência. E direito, grave, saiu.

— Este ao menos é limpo - resmungou Basílio, com o charuto ao canto da boca.

Sentara-se outra vez ao piano, corria os dedos pelo teclado. Luísa aproximou-se:

— Canta alguma coisa, Basílio!

Basílio pôs-se então a olhar muito para ela.

Luísa corou, sorriu; através da fazenda clara e transparente do vestido, entrevia-se a brancura macia e láctea do colo e dos braços; e nos seus olhos, na cor quente do rosto havia uma animação e como uma vitalidade amorosa.

Basílio disse-lhe, baixo:

— Estás hoje nos teus dias felizes, Luísa.

O olhar dele, tão ávido, perturbava-a; insistiu:

— Canta alguma coisa.

O seu seio arfava.

— Canta tu - murmurou Basílio.

E devagarinho, tomou-lhe a mão. As duas palmas um pouco úmidas, um pouco trêmulas, uniram-se.

A campainha, fora, tocou. Luísa desprendeu a mão, bruscamente.

— É alguém - disse agitada.

Vozes baixas falavam à cancela.

Basílio teve um movimento de ombros contrariado; foi buscar o chapéu.

— Vais-te? - exclamou ela toda desconsolada.

— Pudera! Não posso estar só contigo um momento!

A cancela fechou-se com ruído. Não é ninguém, foi-se - disse Luísa.

Estavam de pé, no meio da sala.

— Não te vás! Basílio!

Os seus olhos profundos tinham uma suplicação doce. Basílio pousou o chapéu sobre o piano; mordia o bigode um pouco nervoso.

— E para que queres tu estar só comigo? - disse ela. - Que tem que venha gente? - E arrependeu-se logo daquelas palavras.

Mas Basílio, com um movimento brusco, passou-lhe o braço sobre os ombros, prendeu-lhe a cabeça, e beijou-a na testa, nos olhos, nos cabelos, vorazmente.

Ela soltou-se a tremer, escarlate.

— Perdoa-me - exclamou ele logo, com um ímpeto apaixonado. - Perdoa-me. Foi sem pensar. Mas é porque te adoro, Luísa!

Tomou-lhe as mãos com domínio, quase com direito.

— Não. Hás de ouvir. Desde o primeiro dia que te tornei a ver estou doido por ti, como dantes, a mesma coisa. Nunca deixei de me morrer por ti. Mas não tinha fortuna, tu bem o sabes, e queria-te ver rica, feliz. Não te podia levar para o Brasil. Era matar-te, meu amor! Tu imaginas lá o que aquilo é! Foi por isso que te escrevi aquela carta, mas o que eu sofri, as lágrimas que chorei!

Luísa escutava-o imóvel, a cabeça baixa, o olhar esquecido; aquela voz quente e forte, de que recebia o bafo amoroso, dominava-a, vencia-a; as mãos de Basílio penetravam com o seu calor febril a substância das suas; e, tomada de uma lassidão, sentia-se como adormecer.

— Fala, responde! - disse ele ansiosamente, sacudindo-lhe as mãos, procurando o seu olhar avidamente.

— Que queres que te diga? - murmurou ela.

A sua voz tinha um tom abstrato, mal-acordado.

E desprendendo-se devagar, voltando o rosto:

— Falemos noutras coisas!

Ele balbuciava com os braços estendidos:

— Luísa! Luísa!

— Não, Basílio, não!

E na sua voz havia o arrastado de uma lamentação, com a moleza de uma carícia.

Ele então não hesitou, prendeu-a nos braços.

Luísa ficou inerte, os beiços brancos, os olhos cerrados - e Basílio, pousando-lhe a mão sobre a testa, inclinou-lhe a cabeça para trás, beijou-lhe as pálpebras devagar, a face, os lábios depois muito profundamente; os beiços dela entreabriram-se; os seus joelhos dobraram-se.

Mas de repente todo o seu corpo se endireitou, com um pudor indignado, afastou o rosto, exclamou aflita:

— Deixa-me, deixa-me!

Viera-lhe uma força nervosa; desprendeu-se, empurrou-o; e passando as mãos abertas pela testa, pelos cabelos:

— Oh meu Deus! É horrível! - murmurou. - Deixa-me! É horrível!

Ele adiantava-se com os dentes cerrados; mas Luísa recuava, dizia:

Vai-te. Que queres tu? Vai-te! Que fazes tu aqui? Deixa-me!

Ele então tranqüilizou-a com a voz subitamente serena e humilde. Não percebia. Por que se zangava? Que tinha um beijo? Ele não pedia mais. Que tinha ela imaginado, então? Adorava-a, decerto, mas puramente.

— Juro-to! - disse com força, batendo no peito.

Fê-la sentar no sofá, sentou-se ao pé dela. Falou-lhe muito sensatamente: - Via as circunstâncias, e resignar-se-ia. Seria como uma amizade de irmãos, nada mais.

Ela escutava-o, esquecida.

Decerto, dizia ele, aquela paixão era uma tortura imensa. Mas era forte, a Só queria vir vê-la, falar-lhe. Seria um sentimento ideal. - E os seus devoraram-na.

Voltou-lhe a mão, curvou-se, pôs-lhe um beijo cheio na palma. Ela estremeceu-se logo:

— Não! Vai-te!

— Bem, adeus.

Levantou-se com um movimento resignado e infeliz. E limpando devagar a seda do chapéu.

— Bem, adeus - repetiu melancolicamente.

— Adeus

Basílio disse então com muita ternura:

— Estás zangada?

— Não!

— Escuta - murmurou, adiantando-se.

Luísa bateu com o pé.

— Oh, que homem! Deixa-me! Amanhã. Adeus. Vai-te! Amanhã!

— Amanhã! - disse ele, baixinho.

E saiu rapidamente.

Luísa entrou no quarto toda nervosa. E ao passar diante do espelho ficou surpreendida: nunca se vira tão linda! Deu alguns passos calada.

Juliana arrumava roupa branca num gavetão do guarda-vestidos. Quem tocou há bocado? - perguntou Luísa.

— Foi o Sr. Sebastião. Não quis entrar; disse que voltava.

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