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Authors: Eça de Queirós

O Primo Basílio (4 page)

BOOK: O Primo Basílio
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Luísa não gostava dele: achava-lhe um ar nordeste detestava o seu tom de pedagogo, os reflexos negros da luneta, as calças curtas que mostravam o elástico roto das botas. Mas disfarçava, sorria-lhe, porque Jorge admirava-o, dizia sempre dele: "Tem muito espírito! Tem muito talento! Grande homem!"

Como vinha mais cedo ia à sala de jantar, tomava a sua chávena de café; e tinha sempre um olhar de lado para as pratas do aparador e para as toaletes frescas de Luísa. Aquele parente, um medíocre, que vivia confortavelmente, bem casado, com a carne contente, estimado no ministério, com alguns contos de réis em inscrições - parecia-lhe uma injustiça e pesava-lhe como uma humilhação. Mas afetava estimá-lo; ia sempre às noites, aos domingos; escondia então as suas preocupações, cavaqueava, tinha pilhérias - metendo a cada momento os dedos pelos seus cabelos compridos, secos e cheios de caspa.

Às nove horas, ordinariamente, entrava D. Felicidade de Noronha. Vinha logo da porta com os braços estendidos, o seu bom sorriso dilatado. Tinha cinqüenta anos, era muito nutrida, e, como sofria de dispepsia e de gases, àquela hora não se podia espartilhar e as suas formas transbordavam. Já se viam alguns fios brancos nos seus cabelos levemente anelados, mas a cara era lisa e redonda, cheia, de uma alvura baça e mole de freira; nos olhos papudos, com a pele já engelhada em redor, luzia uma pupila negra e úmida, muito móbil; e aos cantos da boca uns pêlos de buço pareciam traços leves e circunflexos de uma pena muito fina. Fora a íntima amiga da mãe de Luísa, e tomara aquele hábito de vir ver a pequena aos domingos. Era fidalga, dos Noronhas de Redondela, bastante aparentada em Lisboa, um pouco devota, muito da Encarnação.

Mal entrava, ao pôr um beijo muito cantado na face de Luísa, perguntava-lhe baixo, com inquietação:

— Vem?

— O Conselheiro? Vem.

Luísa sabia-o. Porque o Conselheiro, o Conselheiro Acácio, nunca vinha aos "chás de D. Luísa", como ele dizia, sem ter ido na véspera ao Ministério das Obras Públicas procurar Jorge, declarar-lhe com gravidade, curvando um pouco a sua alta estatura:

— Jorge, meu amigo, amanhã lá irei pedir à sua boa esposa a minha chávena de chá.

Ordinariamente acrescentava:

— E os seus valiosos trabalhos progridem? Ainda bem! Se vir o ministro, os meus respeitos a Sua Excelência. Os meus respeitos a esse formoso talento!

E saía pisando com solenidade os corredores enxovalhados.

Havia cinco anos que D. Felicidade o amava. Em casa de Jorge riam-se um pouco com aquela chama. Luísa dizia: "Ora! E uma caturrice dela!" Viam-na corada e nutrida, e não suspeitavam que aquele sentimento concentrado, irritado semanalmente, queimando em silêncio, a ia devastando como uma doença e desmoralizando como um vício. Todos os seus ardores até aí tinham sido inutilizados. Amara um oficial de lanceiros que morrera, e apenas conservava o seu daguerreótipo. Depois apaixonara-se muito ocultamente por um rapaz padeiro, da vizinhança, e vira-o casar. Dera-se então toda a um cão, o Bilro; uma criada despedida deu-lhe por vingança rolha cozida; o Bilro rebentou, e tinha-o agora empalhado na sala de jantar. A pessoa do Conselheiro viera de repente, um dia, pegar fogo àqueles desejos, sobrepostos como combustíveis antigos. Acácio tornara-se a sua mania: admirava a sua figura e a sua gravidade, arregalava grandes olhos para a sua eloqüência, achava-o numa "linda posição". O Conselheiro era a sua ambição e o seu vício! Havia sobretudo nele uma beleza, cuja contemplação demorada a estonteava como um vinho forte: era a calva. Sempre tivera o gosto perverso de certas mulheres pela calva dos homens, e aquele apetite insatisfeito inflamara-se com a idade. Quando se punha a olhar para a calva do Conselheiro, larga, redonda, polida, brilhante às luzes, uma transpiração ansiosa umedecia-lhe as costas, os olhos dardejavam-lhe, tinha uma vontade absurda, ávida de lhe deitar as mãos, palpá-la, sentir-lhe as formas, amassá-la, penetrar-se nela! Mas disfarçava, punha-se a falar alto com um sorriso parvo, abanava-se convulsivamente, e o suor gotejava-lhe nas roscas anafadas do pescoço. Ia para casa rezar estações, impunha-se penitências de muitas coroas à Virgem; mas apenas as orações findavam, começava o temperamento a latejar. E a boa, a pobre D. Felicidade tinha agora pesadelos lascivos e as melancolias do histerismo velho. A indiferença do Conselheiro irritava-a mais: nenhum olhar, nenhum suspiro, nenhuma revelação amorosa e comovida! Era para com ela glacial e polido. Tinham-se às vezes encontrado a sós, à parte, no vão favorável de uma janela, no isolamento mal-alumiado de um canto do sofá - mas apenas ela fazia uma demonstração sentimental, ele erguia-se bruscamente, afastava-se, severo e pudico. Um dia ela julgara perceber que, por trás das suas lunetas escuras, o Conselheiro lhe deitava de revés um olhar apreciador para a abundância do seio; fora mais clara, mais urgente, falara em paixão, disse-lhe baixo:

"Acácio! Mas ele com um gesto gelou-a - e de pé, grave:

— Minha senhora,

As neves que na fronte se acumulam
Terminam por cair no coração...

— É inútil, minha senhora!

O martírio de D. Felicidade era muito oculto, muito disfarçado: ninguém o sabia; conheciam-lhe as infelicidades do sentimento, ignoravam-lhe as torturas do desejo. E um dia Luísa ficou atônita, sentindo D. Felicidade agarrar-lhe o pulso com a mão úmida, e dizer-lhe baixo, os olhos cravados no Conselheiro:

— Que regalo de homem!

Falava-se nessa noite do Alentejo, de Évora e das suas riquezas, da capela dos ossos, quando o Conselheiro entrou com o paletó no braço. Foi-o dobrar solicitamente numa cadeira a um canto, e no seu passo aprumado e oficial veio apertar as mãos ambas de Luísa, dizendo-lhe com uma voz sonora, de papo:

— Minha boa senhora D. Luísa, de perfeita saúde, não? O nosso Jorge tinha-mo dito. Ainda bem! Ainda bem!

Era alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado num colarinho direito. O rosto aguçado no queixo ia-se alargando até à calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto; tingia os cabelos que de uma orelha à outra lhe faziam colar por trás da nuca - e aquele preto lustroso dava, pelo contraste, mais brilho à calva; mas não tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, caído aos da boca. Era muito pálido; nunca tirava as lunetas escuras. Tinha uma covinha no queixo, e as orelhas grandes muito despegadas do crânio.

Fora, outrora, diretor-geral do Ministério do Reino, e sempre que dizia "El-rei!" erguia-se um pouco na cadeira. Os seus gestos eram medidos, mesmo a tomar rapé. Nunca usava palavras triviais; não dizia vomitar, fazia um gesto indicativo e empregava restituir. Dizia sempre "o nosso Garrett, o nosso Herculano". Citava muito. Era autor. E sem família, num terceiro andar da Rua do Ferregial, amancebado com a criada, ocupava-se de economia política: tinha composto os Elementos genéricos da ciência da riqueza e a sua distribuição, segundo os melhores autores, e como subtítulo: Leituras do serão! Havia apenas meses publicara a Relação de todos os ministros de Estado desde o grande Marquês de Pombal até nossos dias, com datas cuidadosamente averiguadas de seus nascimentos e óbitos.

— Já esteve no Alentejo, Conselheiro? - perguntou-lhe Luísa.

— Nunca, minha senhora - e curvou-se. - Nunca! E tenho pena! Sempre desejei lá ir, porque me dizem que as suas curiosidades são de primeira ordem.

Tomou uma pitada de uma caixa dourada, entre os dedos, delicadamente, e acrescentou com pompa:

— De resto, país de grande riqueza suma!

— Ó Jorge, averigua quanto é o partido da Câmara em Évora - disse Julião do canto do sofá.

O Conselheiro acudiu, cheio de informações, com a pitada suspensa:

— Devem ser seiscentos mil réis, Sr. Zuzarte, e pulso livre. Tenho-o nos meus apontamentos. Por que, Sr. Zuzarte, quer deixar Lisboa?

— Talvez!...

Todos desaprovaram.

— Ah! Lisboa sempre é Lisboa! - suspirou D. Felicidade.

— "Cidade de mármore e de granito", na frase sublime do nosso grande historiador! - disse solenemente o Conselheiro.

E sorveu a pitada com os dedos abertos em leque, magros, bem tratados.

D. Felicidade disse então:

— Quem não era capaz de deixar Lisboa nem à mão de Deus Padre, era o Conselheiro!

O Conselheiro, voltando-se vagarosamente para ela, um pouco curvado, replicou:

— Nasci em Lisboa, D. Felicidade, sou lisboeta de alma!

— O Conselheiro - lembrou Jorge - nasceu na Rua de São José.

— Número setenta e cinco, meu Jorge. Na casa pegado àquela em que viveu, até casar, o meu prezado Geraldo, o meu pobre Geraldo!

Geraldo, o seu pobre Geraldo era o pai de Jorge. Acácio fora o seu íntimo. Eram vizinhos. Acácio tocava então rabeca, e, como Geraldo tocava flauta, faziam duos, pertenciam mesmo à Filarmônica da Rua de São José. Depois Acácio, quando entrou nas repartições do Estado, por escrúpulo e por dignidade, abandonou a rabeca, os sentimentos ternos, os serões joviais da Filarmônica. Entregou-se todo à Estatística. Mas conservou-se muito leal a Geraldo; continuou mesmo a Jorge aquela amizade vigilante; fora padrinho do seu casamento, vinha vê-lo todos os domingos, e, no dia dos seus anos, mandava-lhe pontualmente, com uma carta de felicitações, uma lampreia de ovos.

— Aqui nasci - repetiu, desdobrando o seu belo lenço de seda da Índia - e aqui conto morrer.

E assou-se discretamente.

— Isso ainda vem longe, Conselheiro!

Ele disse, com uma melancolia grave:

— Não me arreceio dela, meu Jorge. Até já fiz construir, sem vacilar, no Alto de São João, a minha última morada. Modesta, mas decente. É ao entrar, no arruamento à direita, num lugar abrigado, ao pé da choça dos Veríssimos amigos.

— E já compôs o seu epitáfio, Sr. Conselheiro? - perguntou Julião, do canto, irônico.

— Não o quero, Sr. Zuzarte. Na minha sepultura não quero elogios. Se os meus amigos, os meus patrícios entenderem que eu fiz alguns serviços, têm outros meios para os comemorar: lá têm a imprensa, o comunicado, o necrológio, a poesia mesmo! Por minha vontade quero apenas sobre a lápide lisa, em letras negras, o meu nome - com a minha designação de Conselheiro - a data do meu nascimento e a data do meu óbito.

E com um tom demorado, de reflexão:

— Não me oponho todavia a que inscrevam por baixo, em letras menores:

"Orai por ele!"

Houve um silêncio comovido, e à porta uma voz fina, disse:

— Dão licença?

— Oh, Ernestinho!... - exclamou Jorge.

Com um passo miudinho e rápido, Ernestinho veio abraçá-lo pela cintura:

— Eu soube que tu partias, primo Jorge... Como está, prima Luísa?

Era primo de Jorge. Pequenino, linfático, os seus membros franzinos, ainda quase tenros, davam-lhe um aspecto débil de colegial; o buço, delgado, empastado em cera mostacha, arrebitava-se aos cantos em pontas afiadas como agulhas; e na sua cara chupada, os olhos repolhudos amorteciam-se com um quebrado langoroso. Trazia sapatos de verniz com grandes laços de fita; sobre o colete branco, a cadeia do relógio sustentava um medalhão enorme, de ouro, com frutos e flores esmaltados em relevo. Vivia com uma atrizita do Ginásio, uma magra, cor de melão, com o cabelo muito riçado, o ar tísico - e escrevia para o teatro. Tinha traduções, dos originais num ato, uma comédia, em calembures. Ultimamente trazia em ensaios nas Variedades uma obra considerável, um drama em cinco atos, a Honra e paixão. Era a sua estréia séria. E desde então, viam-no sempre muito atarefado, os bolsos inchados de manuscritos, com localistas, com atores, muito pródigo de cafés e de conhaques, o chapéu ao lado, descorado e dizendo a todos: "Esta vida mata-me!" Escrevia todavia por paixão entranhada pela Arte - porque era empregado na alfândega, com bom vencimento, e tinha quinhentos mil réis de renda das suas inscrições. A Arte mesma, dizia, obrigava-o a desembolsos; para o ato do baile da Honra e paixão mandara fazer, à sua custa, botas de verniz para o galã, botas de verniz para o pai nobre! O seu nome de família era Ledesma.

Deram-lhe um lugar, e Luísa notou logo, pousando o bordado, que estava abatido! Queixou-se então das suas fadigas: os ensaios arrasavam-no; tinha turras com o empresário; na véspera vira-se forçado a refazer todo o final de um ato! Todo!

— E tudo isto - acrescentou muito exaltado - porque é um pelintra, um parvo, e quer que se passe numa sala o ato que se passava num abismo!

— Num quê? - perguntou surpreendida D. Felicidade.

O Conselheiro, muito cortês, explicou:

— Num abismo, D. Felicidade, num despenhadeiro. Também se diz, em bom vernáculo, um vórtice. - Citou: "Num espumoso vórtice se arroja..."

— Num abismo!? - perguntaram. - Por quê?

O Conselheiro quis conhecer o lance.

Ernestinho, radioso, esboçou largamente o enredo: - Era uma mulher casada. Em Sintra tinha-se encontrado com um homem fatal, o Conde de Monte Redondo. O marido, arruinado, devia cem contos de réis ao jogo. Estava desonrado, ia ser preso. A mulher, louca, corre a umas ruínas acasteladas, onde habita o conde, deixa cair o véu, conta-lhe a catástrofe. O conde lança o seu manto aos ombros, parte, chega no momento em que os beleguins vão levar o homem. - É uma cena muito comovente - dizia - é de noite, ao luar! - O conde desembuça-se, atira uma bolsa de ouro aos pés dos beleguins, gritando-lhes: "Saciai-vos, abutres!..."

— Belo final! - murmurou o Conselheiro.

— Enfim - acrescentou Ernesto, resumindo -, aqui há um enredo complicado: o Conde de Monte Redondo e a mulher amam-se, o marido descobre, arremessa todo o seu ouro aos pés do conde, e mata a esposa.

— Como? - perguntaram.

— Atira-a ao abismo. E no quinto ato. O conde vê, corre, atira-se também. O marido cruza os braços e dá uma gargalhada infernal. Foi assim que eu imaginei a coisa!

Calou-se, ofegante; e, abanando-se com o lenço, rolava em redor os seus olhos langorosos, prateados como os de um peixe morto.

— É uma obra de cunho, embatem-se grandes paixões! - disse o Conselheiro, passando as mãos sobre a calva. - Os meus parabéns, Sr. Ledesma!

— Mas que quer o empresário? - perguntou Julião, que escutara de pé, atônito - que quer ele? Quer o abismo num primeiro andar, mobilado pelo Gardé?

Ernestinho voltou-se, muito afetuosamente:

— Não, Sr. Zuzarte - a sua voz era quase meiga -, quer o desfecho numa sala. De modo que eu - e fazia um gesto resignado - a gente tem de condescender, tive de escrever outro final. Passei a noite em claro. Tomei três chávenas de café!...

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