O Primo Basílio (21 page)

Read O Primo Basílio Online

Authors: Eça de Queirós

BOOK: O Primo Basílio
5.49Mb size Format: txt, pdf, ePub

Luísa ergueu-se, com um salto, lívida. Era Jorge! Amarrotou convulsivamente a carta, quis escondê-la no bolso, - o roupão não tinha bolso! E desvairada, sem reflexão, arremessou-a para o sarcófago. Ficou de pé, esperando, as duas mãos apoiadas à mesa, a vida suspensa.

O reposteiro ergueu-se - e reconheceu logo o chapéu de veludo azul de D. Felicidade.

— Aqui metida, sua brejeira! Que estavas tu aqui a fazer? Que tens tu, filha, estás como a cal...

Luísa deixou-se cair no fauteuil1, branca e fria; disse com um sorriso cansado:

—`Estava a escrever, deu-me uma tontura...

— Ai! Tonturas, eu! - acudiu logo D. Felicidade. - É uma desgraça, a cada momento a agarrar-me aos móveis; até tenho medo de andar só. Falta de purgas!

— Vamos para o quarto! - disse logo Luísa. - Estamos melhor no quarto.

Ao erguer-se, as pernas tremiam-lhe.

Atravessaram a sala; Juliana começava a arrumar. Luísa ao passar, viu na pedra da consola, debaixo do espelho oval, uma pouca de cinza; era da véspera, do charuto dele! Sacudiu-a - e ao erguer os olhos, ficou pasmada de se ver tão pálida.

A costureira vestida de preto, com um chapéu de fitas roxas, esperava sentada à beira da causeuse, com um olhar infeliz e o seu embrulho nos joelhos; vinha provar o corpete de um vestido composto; assentou, pregou, alinhavou, falando baixo, com uma humildade triste e uma tossinha seca; e apenas ela saiu, leve, com o seu andar de sombra, o xale tinto muito cingido às omoplatas magras - D. Felicidade começou logo a falar dele, do Conselheiro. Tinha-o encontrado no Moinho de Vento. Pois, senhores, nem lhe viera falar! Fizera-lhe uma cortesia muito seca, por demais, e tique-taque por ali fora, que se diria que ia fugido! Que te parece? Ai! Aquelas indiferenças matavam-na. E não as compreendia, não realmente não as compreendia...

— Porque enfim - exclamava - eu bem me conheço, não sou nenhuma criança, mas também não sou nenhum caco! Pois não é verdade?

— Certamente - disse Luísa distraída. Lembrava-lhe a carta.

— Olha que aqui onde me vês com os meus quarenta, decotada, ainda valho. O que são ombros e colo é do melhor!

— Luísa ia erguer-se. Mas D. Felicidade repetiu:

— Do melhor! Tomaram-no muitas novas!

— Creio bem - concordou Luísa, sorrindo vagamente.

— E ele também não é nenhum rapazinho novo...

— Não...

— Mas muito bem conservado! - E os olhos luziam-lhe. uma mulher muito feliz!

— Muito...

— Um homem de apetecer! - suspirou D. Felicidade. E Luísa então:

— Tu esperas um instantinho? Vou lá dentro e volto já.

— Vai, filha, vai.

Luísa correu ao escritório, direita ao sarcófago. Estava vazio! E a carta dela, Santo Deus?

Chamou logo Juliana, aterrada.

— Você despejou o caixão dos papéis?

— Despejei, sim, minha senhora - respondeu muito tranqüilamente.

E com interesse:

— Por quê, perdeu-se algum papel?

Luísa fazia-se pálida.

— Foi um papel que eu atirei para o caixão. Onde o despejou você?

— No barril do lixo, como é costume, minha senhora; imaginei que nada servia...

— Ah! Deixe ver!

Subiu rapidamente à cozinha. Juliana atrás, ia dizendo:

— Ora esta! Pois ainda não há cinco minutos! O caixão estava mais cheio... Andei a dar uma arrumadela no escritório... Valha-me Deus, se a senhora tem dito...

Mas o barril do lixo estava vazio, Joana tinha-o ido despejar abaixo naquele instantinho; e vendo a inquietação de Luísa:

— Por quê, perdeu-se alguma coisa?

— Um papel - disse Luísa, que olhava em redor, pelo chão, muito branca.

— Iam uns poucos de papéis, minha senhora - disse a rapariga -, eu deitei tudo ao despejo.

— Podia ter ficado algum caído por fora, Sra. Joana - lembrou timidamente Juliana.

— Vá ver, vá ver, Joana - acudiu Luísa com uma esperança.

Juliana parecia aflita:

— Jesus, senhor! Eu podia lá adivinhar! Mas para que não disse a senhora?...

— Bem, bem, a culpa não é sua, mulher...

— Credo, que até se me está a embrulhar o estômago... E é coisa de importância, minha senhora?

— Não, é uma conta...

— Valha-me Deus!...

Joana voltou, sacudindo um papel enxovalhado. Luísa agarrou-o, leu:-".. o diâmetro do primeiro poço de exploração..."

— Não, não é isto! - exclamou toda contrariada.

— Então foi pra baixo pra o cano, minha senhora; não está! mais nada.

— Viu bem?

— Esquadrinhei tudo...

E Juliana continuava, desolada:

— Antes queria perder dez tostões! Uma assim! Eu, minha senhora, podia lá adivinhar...

— Bem, bem! - murmurou Luísa descendo.

Mas estava assustada; sentia mesmo uma suspeita indefinida... Lembrou-lhe o bilhete que escrevera na véspera a Basílio, e que metera, todo amarrotado, no bolso do vestido... Entrou no quarto, agitada.

D. Felicidade tirara o chapéu, acomodara-se na causeuse.

— Tu desculpas, hem? - fez Luísa.

— Anda, filha, anda! Que é?

— Perdi uma conta - respondeu.

Foi ao guarda-vestidos; achou logo o bilhete na algibeira... Aquilo serenou-a. A carta tinha ido para o lixo, decerto. Mas que imprudência!

— Bem, acabou-se! - disse sentando-se resignada.

E D. Felicidade imediatamente, baixando a voz muito confidencialmente:

— Ora, eu vinha-te falar numa coisa. Mas vê lá! Olha que é segredo.

Luísa ficou logo sobressaltada.

— Tu sabes - continuou D. Felicidade, devagar, com pausas - que a minha criada, a Josefa, está para casar com o galego... O homem é de ao pé de Tui, e diz que na terra dele há uma mulher que tem virtude para fazer casamentos que é uma coisa milagrosa... Diz que é o mais que há... Em deitando a sorte a um o homem entra-lhe uma tal paixão que se arranja logo o casamento e é a maior felicidade.

Luísa tranqüilizada, sorriu.

— Escuta - acudiu D. Felicidade -, não te ponhas já com as tuas coisas...

No seu tom grave havia um respeito supersticioso.

— Diz que tem feito milagres. Homens que tinham desamparado raparigas, outros que não faziam caso delas, maridos que tinham amigas; enfim toda a sorte de ingratidão... Em a mulher deitando o encanto, os homens começam a esmoecer, a arrepender-se, a apaixonar-se, e estão pelo beiço... A rapariga contou-me isso. Eu lembrei-me logo...

— De deitar uma sorte ao Conselheiro! - exclamou Luísa.

— Que te parece?

Luísa deu uma risada sonora. Mas D. Felicidade quase se escandalizou. Contou outros casos: um fidalgo que desonrara uma lavadeira; um homem que abandonou a mulher e os filhos, fugira com uma bêbeda... Em todos a sorte operara de um modo fulminante, produzindo um amor súbito e fogoso pela pessoa desprezada. Apareciam logo rendidos, se estavam perto; se estavam longe, voltavam, ávidos, a pé, a cavalo, na mala-posta, apressando-se, ardendo... E entregavam-se, mansos e humildes como escravos acorrentados...

— Mas o galego - continuava ela muito excitada - diz que para ir à terra, falar à mulher, levar o retrato do Conselheiro, é necessário o retrato dele, o meu, é necessário o meu; ir falar, voltar - quer sete moedas!...

— Oh! D. Felicidade! - fez Luísa repreensivamente.

— Não me digas, não venhas com as tuas! Olha que eu sei de casos...

E erguendo-se:

— Mas são sete moedas! Sete moedas! - exclamou, arregalando os olhos.

Juliana apareceu à porta, e muito baixinho, com um sorriso:

— A senhora faz favor?

Chamou-a para o corredor, em segredo:

— Esta carta. Que vem do hotel.

Luísa fez-se escarlate.

— Credo, mulher! Não é necessário fazer mistérios!

Mas não entrou no quarto, abriu-a logo no corredor; era a lápis, escrita à pressa:

"Meu amor" - dizia Basílio - "por um feliz acaso descobri o que precisávamos, um ninho discreto para nos vermos...

E indicava a rua, o número, os sinais, o caminho mais perto.

...Quando vens, meu amor? Vem amanhã. Batizei a casa com o nome de Paraíso; para mim, minha adorada, é com efeito o Paraíso. Eu espero-te lá desde o meio-dia; logo que te aviste, desço.

Aquela precipitação amorosa em arranjar o ninho - provando uma paixão impaciente, toda ocupada dela - produziu-lhe uma dilatação doce do orgulho; ao mesmo tempo que aquele Paraíso secreto, como num romance, lhe dava a esperança de felicidades excepcionais; e todas as suas inquietações, os sustos da carta perdida se dissiparam de repente sob uma sensação cálida, como flocos de névoa sob o sol que se levanta.

Voltou ao quarto, com o olhar risonho.

— Que te parece, hem? - perguntou logo D. Felicidade, a quem a sua idéia ocupava tiranicamente.

— O quê?

— Achas que mande o homem a Tui?

Luísa encolheu os ombros; veio-lhe um tédio de tais enredos de bruxaria, misturados a amores caturras. Na vaidade da sua intriga romântica, achava repugnante aquele sentimentalismo senil.

— Tolices! - disse com muito desdém.

— Oh, filha! Não me digas, não me digas! - acudiu desolada D. Felicidade.

— Bem, então manda, manda! - fez Luísa, já impaciente.

— Mas são sete moedas! - exclamou D. Felicidade, quase chorosa.

Luísa pôs-se a rir.

— Por um marido? Acho barato...

— E se a sorte falha?

— Então é caro!

D. Felicidade deu um grande "ai!" Estava muito infeliz, naquela hesitação entre os impulsos da concupiscência e as prudências da economia. Luísa teve pena dela, e, tirando um vestido do guarda-roupa:

— Deixa lá, filha! Não hão de ser necessárias bruxarias!...

D. Felicidade ergueu os olhos ao céu.

— Vais sair? - perguntou melancolicamente.

— Não.

D. Felicidade propôs-lhe então que viesse com ela à Encarnação. Visitavam a Silveira, coitada, que tinha um furúnculo! E viam a armação da igreja para a festa; estreava-se o frontal novo, um primor!

— E estou também com vontade de ir rezar uma estaçãozinha, para aliviar cá por dentro - ajuntou, suspirando.

Luísa aceitou. Apetecia-lhe ir ver altares alumiados, ouvir o ciciar de rezas no coro, como se os requintes devotos dissessem bem com as suas disposições sentimentais. Começou a vestir-se depressa.

— Como tu estás gorda, filha! - exclamou D. Felicidade admirada, vendo-lhe os ombros, o colo.

Luísa diante do espelho olhava-se, sorria com o seu sorriso quente, contente das suas linhas, acariciando devagarinho, voluptuosamente, a pele branca e fina.

— Redondinha - disse, namorando-se.

— Redondinha? Vais-te a fazer uma bola!

E acrescentou, tristemente:

— Também com a tua vida, um marido como o teu, regaladinha, sem filhos, sem cuidados...

— Vamos lá, minha rica - disse Luísa -, que as tristezas não te têm feito emagrecer.

— Pois sim, pois sim! Mas... - e parecia desolada, como curvada sob as suas próprias ruínas - cá por dentro é uma desgraça, estômago, fígado...

— Se a mulher de Tui faz o milagre, põe tudo isso como novo!

Felicidade sorriu, com uma dúvida desconsolada.

— Sabes que tenho um chapéu lindo? - exclamou de repente Luísa. - Não viste? Lindo!

Foi logo buscá-lo ao guarda-vestidos. Era de palha fina, guarnecido de miosótis.

— Que te parece?

— É um primor!

Luísa mirava-o dando pancadinhas com as pontas dos dedos nas florzinhas azuis.

— Dá frescura - fez D. Felicidade.

— Não é verdade?

Pô-lo com muito cuidado, toda séria. Ficava-lhe bem! Basílio se a visse havia gostar, pensou. Era bem possível que o encontrassem...

— Veio-lhe, sem motivo, uma felicidade exuberante; achava tão delicioso viver, sair, ir à Encarnação, pensar no seu amante!... E toda no ar, procurava pelo as chavinhas do toucador.

Onde tinha deixado as chaves? Na sala de jantar, talvez! Ia ver! Saiu correndo, tontinha, cantarolando:

— Amici, ta notte e bella...

La ra la la...

Quase topou com Juliana, que varria o corredor.

— Não deixe de engomar a saia bordada para amanhã, Juliana!

— Sim, minha senhora. Está em goma!

E seguindo-a com um olhar feroz:

— Canta, piorrinha; canta, cabrazinha; canta, bebedazinha!...

E ela mesma, tomada subitamente de um júbilo agudo, atirou vassouradas rápidas, soltando na sua voz rachada:

— Além de amanhã termina a campanha,

P-o-o-or aqui se diz...

Se tal for verdade, se não for patranha...

E com um espremido enfático:

— Se-e-rei bem feliz!

Ao outro dia, pelas duas horas da tarde, Sebastião e Julião passeavam em São Pedro de Alcântara.

Sebastião estivera contando a sua cena com Luísa, e como desde então a sua estima por ela crescera. Ao principio escabreara-se, sim...

— Mas teve razão! Assim de surpresa, ouvir uma daquelas! E eu levei a coisa mal, fui muito à bruta...

Depois, coitadinha, concordara logo, mostra-se muito desgostosa, toda zelosa do seu pudor, pedira-lhe conselhos... Até tinha as lágrimas nos olhos.

— Eu disse-lhe logo que o melhor era falar ao primo, dizer o que se passava... Que te parece?

— Sim - disse vagamente Julião.

Tinha-o escutado distraído, chupando a ponta do cigarro. O seu rosto térreo cavava-se, com uma cor mais biliosa.

— Então achas que fiz bem, hem?

E depois de uma pausa:

— Que ela é uma senhora de bem às direitas! As direitas, Julião!

Continuaram calados. O dia estava encoberto e abafado, com um ar de trovoada; grossas nuvens pesadas e pardas iam-se acumulando, enegrecendo para o lado da Graça por trás das colinas; um vento rasteiro passava por vezes, pondo um arrepio nas folhas das árvores.

— De maneira que agora estou descansado - resumiu Sebastião. - Não te parece?

Julião encolheu os ombros com um sorriso triste:

— Quem me dera os teus cuidados, homem! - disse.

E falou então com amargura nas suas preocupações. - Havia uma semana que se abrira concurso para uma cadeira de substituto na Escola, e preparava-se para ele. Era a sua tábua de salvação, dizia; se apanhasse a cadeira, ganhava logo nome, a clientela podia vir, e a fortuna... E, que diabo, sempre era estar de dentro!... Mas a certeza da sua superioridade não o tranqüilizava - porque enfim em Portugal, não é verdade? Nestas questões a ciência, o estudo, o talento são uma história; o principal são os padrinhos! Ele não os tinha - e o seu concorrente, um sensaborão, era sobrinho de um diretor-geral, tinha parentes na Câmara; era um colosso! Por isso ele trabalhava a valer, mas parecia-lhe indispensável meter também as suas cunhas! Mas quem?

Other books

Stranger in Camelot by Deborah Smith
Planet Fever by Stier Jr., Peter
Cold Steal by Quentin Bates
The Infected by Gregg Cocking
Scrumptious by Amanda Usen
Special Ops Exclusive by Elle Kennedy
In the Devil's Snare by Mary Beth Norton