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Authors: Eça de Queirós

O Primo Basílio (24 page)

BOOK: O Primo Basílio
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Apenas alguém entrava para a ver, redobrava de exclamações e de queixas; vinha logo a história miúda, incidentada, prolixa da desgraça; ia a descer, a pôr o pé no degrau; escorregara; sentiu que ia a cair; ainda se sustentou, e pôde dizer: "Ai, Nossa Senhora da Saúde!" Ao princípio a dor não foi grande; mas podia ter morrido; tinha sido um milagre!

Todas as senhoras concordavam que era realmente um milagre. Olhavam-na compungidas, e iam ao coro alternadamente prostrar-se, e pedir aos santos especiais o alívio da Noronha!

A primeira visita de Luísa foi para D. Felicidade uma consolação; deu-lhe melhoras; porque se ralava de estar ali de cama, sem saber notícias dele, sem poder falar dele!

E nos dias seguintes, apenas ficava só no quarto com Luísa, chamava-a logo para a cabeceira, e num murmúrio misterioso: tinha-o visto? Sabia dele? - A sua aflição era que o Conselheiro não soubesse que ela estava doente, e não lhe pudesse dar aqueles pensamentos compassivos a que o seu pé tinha direito, e que seriam um conforto para o seu coração! Mas Luísa não o vira - e D. Felicidade, remexendo a chazada, exalava suspiros agudos.

As duas horas Luísa saía da Encarnação e ia tomar um trem ao Rossio: para não parar à porta do Paraíso com espalhafato de tipóia, apeava-se ao Largo de Santa Bárbara; e fazendo-se pequenina, cosida com a sombra das casas, apressava-se com os olhos baixos, e um vago sorriso de prazer.

Basílio esperava-a deitado na cama, em mangas de camisa; para não se enfastiar, só, tinha trazido para o Paraíso uma garrafa de conhaque, açúcar, limões - e com a porta entreaberta fumava, fazendo grogues frios. O tempo arrastava-se; via a todo o momento as horas, e sem querer ia escutando, notando os ruídos íntimos da família da proprietária que vivia nos quartos interiores: a rabugem de uma criança, uma voz acatarroada que ralhava, e de repente uma cadelinha que começava a ladrar furiosa. Basílio achava aquilo burguês e reles; impacientava-se. Mas um frufru de vestido roçava a escada e os tédios dele, bem como os receios dela, dissipavam-se logo no calor dos primeiros beijos. Luísa vinha sempre com pressa; queria estar em casa às cinco horas, e era um estirão depois! Entrava um pouco suada, e Basílio gostava da transpiraçãozinha tépida que havia nos seus ombros nus.

— E teu marido? - perguntava ele. - Quando vem?

— Não fala em nada. - Ou então: - Não recebi carta, não sei nada.

Parecia ser aquela a preocupação de Basílio, na alegria egoísta da posse recente. Tinha então carícias muito extáticas; ajoelhava-se aos pés dela; fazia voz de criança:

— Lili não ama Bibi...

Ela ria, meio despida, com um riso cantado e libertino.

— Lili adora Bibi!... É doida por Bibi!

E queria saber se pensava nela; o que tinha feito na véspera. Fora ao Grêmio; jogara uns robbers, viera para casa cedo; sonhara com ela...

— Vivo para ti, meu amor, acredita!

— E deixava-lhe cair a cabeça no regaço, como sob uma felicidade excessiva.

Outras vezes, mais sério, dava-lhe certos conselhos de gosto, de toalete: pedira-lhe que não trouxesse postiços no cabelo, que não usasse botinas de elástico.

Luísa admirava muito a sua experiência do luxo; obedecia-lhe, amoldava-se suas idéias: - até afetar, sem o sentir, um desdém pela gente virtuosa, para imitar as suas opiniões libertinas.

E lentamente, vendo aquela docilidade, Basílio não se dava ao incômodo de se constranger; usava dela, como se a pagasse! Acontecera uma manhã escrever-lhe duas palavras a lápis que não podia ir ao Paraíso, sem outras explicações! Uma ocasião mesmo não foi, sem a avisar - e Luísa achou a porta fechada. Bateu timidamente, olhou pela fechadura, esperou palpitante - e voltou muito desconsolada, quebrada do calor, com a poeirada nos olhos, e vontade de chorar.

Não aceitava o menor incômodo, nem para lhe causar um contentamento. Luísa tinha-lhe pedido que fosse de vez em quando aos domingos à sua casa, passar a noite; viriam Sebastião, o Conselheiro, D. Felicidade quando estivesse melhor; era uma alegria para ela, e depois dava às suas relações um ar mais parente, mais legítimo.

Mas Basílio pulou:

— O quê! Ir cabecear de sono com quatro caturras... Ah! Não!...

— Mas conversa-se, faz-se música...

— Merci! Conheço-a, a música das soirées de Lisboa! A Valsa do Beijo e o Trovador. Safa!

Depois duas ou três vezes falara de Jorge com desdém. Aquilo ofendera-a.

Ultimamente mesmo, quando ela entrava no Paraíso, já não tinha a delicadeza amorosa de se levantar alvoroçado: sentava-se apenas na cama, e tirando preguiçosamente o charuto da boca:

— Ora viva a minha flor! - dizia.

E um ar de superioridade quando lhe falava! Um modo de encolher os ombros, de exclamar: "Tu não percebes nada disso!" Chegava a ter palavras cruas, gestos brutais. E Luísa começou a desconfiar que Basílio não a estimava, apenas a desejava!

Ao princípio chorou. Resolveu explicar-se com ele, romper se fosse necessário. Mas adiou, não se atrevia: a figura de Basílio, a sua voz, o seu olhar dominavam-na; e acendendo-lhe a paixão tiravam-lhe a coragem de a perturbar com queixas. Porque estava convencida então que o adorava; o que lhe dava tanta exaltação no desejo, se não era a grandeza do sentimento?... Gozava tanto, o amava muito!... E a sua honestidade natural, os seus pudores refugiavam-se neste raciocínio sutil.

Ele tinha às vezes uma secura áspera de maneiras, era verdade; certos tons de indiferença, era certo... Mas noutros momentos, quantas denguices, que tremuras na voz, que frenesi nas carícias!... Amava-a também, não havia dúvida. Aquela certeza era a sua justificação. E como era o amor que os produzia, não se envergonhava dos alvoroços voluptuosos com que ia todas as manhãs ao Paraíso!

Duas ou três vezes, ao voltar, tinha encontrado Juliana que subia também apressada o Moinho de Vento.

— De onde vinha você? - perguntara-lhe em casa.

— Do médico, minha senhora, fui ao médico.

Queixava-se de pontadas, palpitações, faltas de ar.

— Flatos! Flatos!

Com efeito, Juliana agora fazia todos os arranjos pela manhã; depois apenas Luísa, pela uma hora, dobrava a esquina, ia-se vestir, e muito espartilhada no seu vestido de merino, de chapéu e sombrinha, vinha dizer a Joana:

— Até logo, vou ao médico.

— Até logo, Sra. Juliana - dizia a cozinheira radiante.

E ia logo fazer sinal ao carpinteiro.

Juliana descia por São Pedro de Alcântara, e tomando para o Largo do Carmo ia à ruazita, defronte do quartel. Ali morava num terceiro andar a sua íntima amiga, a tia Vitória.

Era uma velha que fora inculcadeira. Ainda tinha mesmo na cancela, numa placa de metal, com letras negras: "VITÓRIA SOARES, INCULCADEIRA". Mas nos últimos anos a sua indústria tornou-se mais complicada, muito tortuosa.

Exercia-a numa saleta esteirada, com mosquiteiros de papel pendentes do teto encardido, alumiada por duas tristes janelas de peito. Um vasto sofá ocupava quase a parede do fundo; fora decerto de repes verde, mas o estofo coçado, comido, remendado, tinha agora, sob largas nódoas, uma vaga cor parda; as molas partidas, rangiam com estalidos melancólicos; a um dos cantos, numa cova que o uso cavara, dormia todo o dia um gato; e um dos lados da madeira queimada revelava que fora salvo de um incêndio. Sobre o sofá pendia a litografia do senhor D. Pedro IV. Entre as duas janelas havia uma cômoda alta; e em cima, entre um Santo Antônio e um cofre feito de búzios, um macaquinho empalhado, com olhos de vidro, equilibrava-se sobre um galho de árvore. Ao entrar via-se logo, junto da janela fronteira à porta, a uma mesa coberta de oleado, um dorso magro e curvado, e um barretinho de seda com uma borla arrebitada. Era do Sr. Gouveia, o escriturário!

O ar abafado tinha um cheiro complexo, indefinido - em que se sentia a cavalariça, a graxa e o refogado. Havia sempre gente: grossas matronas de capote e lenço, face gordalhufa e buço; cocheiros com o cabelo acamado, muito lustroso de óleo, e blusa de riscadinho; pesados galegos cor de greda, de passadas retumbantes e formas lorpas; criadinhas de dentro, amareladas, de olheiras, sombrinha de cabo de osso, e as luvas de pelica com passagens nas pontas dos dedos.

Defronte da sala abria-se um quarto que deitava para o saguão, por cuja portinha verde se viam às vezes desaparecer dorsos respeitáveis de proprietários, ou caudas espalhafatosas de vestidos suspeitos.

Em certas ocasiões, aos sábados, juntavam-se cinco, seis pessoas; velhas falavam baixo, com gestos misteriosos; uma altercação mal-abafada roncava no patamar, de repente desatavam a chorar; e, impassível, o Sr. Gouveia escrevinhava os seus registos, arremessando para o lado jatos melancólicos de saliva.

A tia Vitória, no entanto, com a sua touca de renda negra, um vestido roxo - ia, vinha, cochichava, gesticulava, fazia tilintar dinheiro, tirando a cada momento da algibeira rebuçados de avenca para o catarro.

A tia Vitória era uma grande utilidade; tornara-se um centro! A criadagem reles, mesmo a criadagem fina, tinha ali para tudo o seu despacho. Emprestava dinheiro aos desempregados; guardava as economias dos poupados; fazia escrever pelo Sr Gouveia as correspondências amorosas ou domésticas dos que não tinham ido a escola; vendia vestidos em segunda mão; alugava casaca; aconselhava colocações, recebia confidências, dirigia intrigas, entendia de partos. Nenhum criado era inculcado por ela; mas, arranjados ou despedidos, nunca deixavam de subir, descer as escadas da tia Vitória. Tinha além disso muitas relações, infinitas condescendências; celibatários maduros iam entender-se com ela, para o confortozinho de uma sopeira gordita e nova; era ela quem inculcava as serventes às mulheres policiadas; sabia de certos agiotas discretos. E dizia-se: "a tia Vitória tem mais manhas que cabelos!"

Mas, ultimamente, apesar dos seus afazeres, apenas Juliana entrava, levava--a para o quarto nas traseiras, fechava a porta, e havia para meia hora!

E Juliana saia sempre vermelha, os olhos acesos, feliz! Voltava depressa para casa e mal entrava:

— A senhora ainda não voltou, Sra. Joana?

— Ainda não.

— Está na Encarnação. Coitada! Não tem má cruz, ir aturar a velha! E depois naturalmente vai dar o seu passeio! Faz ela muito bem! Espairecer!

Joana era decerto espessa e obtusa; além disso a paixão animal pelo rapazola emparvecia-a. Todavia, percebera que a Sra. Juliana andava muito derretida pela senhora; disse-lho mesmo um dia:

— Vossemecê agora, Sra Juliana, parece mais na bola da senhora!

— Na bola?

— Sim, quero dizer, mais aquela, mais...

— Mais apegada à senhora?

— Mais apegada.

— Sempre o estive. Mas então! Às vezes a gente tem os seus repentes... Que olhe, Sra Joana, não se acha melhor que aqui. Senhora de muito bom gênio, nada se esquisitices, nenhumas prisões... Ai, é dar louvores ao céu de estarmos neste descanso.

— E é!

A casa com efeito tinha um aspecto jovial de felicidade tranqüila: Luísa saía todos os dias e achava tudo bom; nunca se impacientava; a sua antipatia por Juliana parecia dissipada; considerava-a uma pobre de Cristo! Juliana tomava os seus caldinhos, dava os seus passeios, ruminava. Joana, muito livre, muito só em casa, regalava-se com o carpinteiro. Não vinham visitas. D. Felicidade, na Encarnação, inundava-se de arnica. Sebastião fora para a Almada vigiar as obras. O Conselheiro partira para Sintra, "dar umas férias ao espírito", tinha ele dito a Luísa, e deliciar-se nas maravilhas daquele Éden. O Sr. Julião, "o doutor", como dizia a Joana, trabalhava a sua tese. As horas eram muito regulares; havia sempre um silêncio pacato. Juliana, um dia, na cozinha, impressionada por aquele recolhimento satisfeito de toda a casa, exclamou para Joana:

— Não se pode estar melhor! A barca vai num mar de rosas!

E acrescentou, com uma risadinha:

— E eu ao leme!

Capítulo sete

 

Por esse tempo, uma manhã que Luísa ia para o Paraíso viu de repente sair de um portal, um pouco adiante do Largo de Santa Bárbara, a figura azafamada de Ernestinho.

— Por aqui, prima Luísa! - exclamou ele logo muito surpreendido. - Por estes bairros! Que faz por aqui? Grande milagre!

Vinha vermelho; trazia as bandas do casaco de alpaca todas deitadas para trás, e agitava com excitação um rolo grosso de papéis.

Luísa ficou um pouco embaraçada; disse que viera fazer uma visita a uma amiga. - Oh! Ele não conhecia; tinha chegado do Porto...

— Ah, bem! Bem! E que é feito, como tem passado? Quando vem o Jorge? - Desculpou-se logo de a não ter ido ver; mas é que não tinha uma migalha livre! De manhã a alfândega; à noite os ensaios...

— Então sempre vai? - perguntou Luísa.

— Vai.

E entusiasmado:

— E como vai! Um primor! Mas que trabalhão, que trabalhão! - Agora vinha ele de casa do ator Pinto, que fazia o papel de amante, de Conde de Monte Redondo; tinha-o ouvido dizer as palavras finais do terceiro ato: "Maldição, a sorte funesta esmaga-me! Pois bem arcarei braço a braço com a sorte! À luta!" Era uma maravilha! Vinha também de lhe dar parte que alterara o monólogo do segundo ato. O empresário achava-o longo...

— Então continua a implicar, o empresário?

Ernestinho fez uma visagem de hesitação.

— Implica um bocado... - E com um rosto radioso: - Mas está delirante! Estão todos delirantes! Ontem me dizia ele: "Lesminha"... E o nome que me dão por pândega. Tem graça, não é verdade? Dizia-me ele "Lesminha, na primeira representação cai aí Lisboa em peso! Você enterra-os a todos!" É bom homem! E agora vou-me a casa do Bastos, o folhetinista da Verdade. Não conhece?

Luísa não se lembrava bem.

— O Bastos, o da Verdade! - insistia ele.

E vendo que Luísa parecia alheia ao nome, ao indivíduo:

— Ora não conhece outra coisa! - Ia descrever-lhe as feições, citar-lhe as obras...

Mas Luísa, impaciente, para findar:

— Ah, sim! Lembro-me agora. Perfeitamente... Bem sei!

— Pois é verdade, vou à casa dele. - Tomou um tom compenetrado: - Somos muito amigos, é muito bom rapaz; e tem um pequerrucho lindo!... - E apertando-lhe muito a mão: - Adeusinho, prima Luísa, que não posso perder um momento. Quer que a vá acompanhar?

— Não, é aqui perto.

— Adeus, recados ao Jorge!

— Ia a afastar-se, atarefado, mas voltando-se rapidamente, correu atrás dela.

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