Authors: Eça de Queirós
— Tu não conheces ninguém, Sebastião?...
Sebastião lembrava-se de um primo seu, deputado pelo Alentejo, um gordo da maioria, um pouco fanhoso. Se Julião queria, falava-lhe... Mas sempre ouvira dizer que a Escola não era gente de empenhos e de intriga... De resto tinham o Conselheiro Acácio...
— Uma besta! - fez Julião. - Um parlapatão. Quem faz lá caso daquilo? O teu pnmo, hem! O teu primo parece-me bom! E necessário alguém que fale, trabalhe... - Porque acreditava muito nas influências dos empenhos, no domínio dos "personagens", nas docilidades da fortuna quando dirigida pelas habilidades da intriga. E com um orgulho raiado de ameaça: - Que eu hei de lhes mostrar o que é saber as coisas, Sebastião!
Ia explicar-lhe o assunto da tese, mas Sebastião interrompeu-o:
— Ela aí vem.
— Quem?
— A Luísa.
Passava com efeito, por fora do Passeio, toda vestida de preto, só. - Respondeu à cortesia dos dois homens com um sorriso, adeusinhos da mão, um pouco corada.
E Sebastião imóvel, seguindo-a devotamente com os olhos:
— Se aquilo não respira mesmo honestidade! Vai às lojas... Santa rapariga!
Ia encontrar Basílio no Paraíso pela primeira vez. E estava muito nervosa: não dominar, desde pela manhã, um medo indefinido que lhe fizera pôr um véu muito espesso, e bater o coração ao encontrar Sebastião. Mas ao mesmo uma curiosidade intensa, múltipla, impelia-a, com um estremecimentozinho de prazer. - Ia, enfim, ter ela própria aquela aventura que lera tantas vezes nos romances amorosos! Era uma forma nova do amor que ia experimentar, sensações excepcionais! Havia tudo - a casinha misteriosa, o segredo ilegítimo, todas as palpitações do perigo! Porque o aparato impressionava-a mais que o sentimento; e a casa em si interessava-a, atraía-a mais que Basílio! Como seria? Era os lados de Arroios, adiante do Largo de Santa Bárbara; lembrava-se vagamente que havia ali uma correnteza de casas velhas... Desejaria antes que fosse numa quinta, com arvoredos murmurosos e relvas fofas; passeariam as mãos enlaçadas, num silêncio poético; e depois o som da água que cai nas bacias de pedra daria um ritmo lânguido aos sonhos amorosos... Mas era num terceiro andar - quem sabe como seria dentro? Lembrava-lhe um romance de Paulo Féval em que o herói, poeta e duque, forra de cetins e tapeçarias o interior de uma choça; encontra ali a sua amante; os que passam, vendo aquele casebre arruinado, dão um pensamento compassivo à miséria que decerto o habita - enquanto dentro, muito secretamente, as flores se esfolham nos vasos de Sèvres e os pés nus pisam gobelins veneráveis! Conhecia o gosto de Basílio - e o Paraíso decerto era como no romance de Paulo Féval.
Mas no Largo de Camões reparou que o sujeito de pêra comprida, o do Passeio, a vinha seguindo, com uma obstinação de galo; tomou logo um cupê. E ao descer o Chiado, sentia uma sensação deliciosa em ser assim levada rapidamente para o seu amante, e mesmo olhava com certo desdém os que passavam,
no movimento da vida trivial - enquanto ela ia para uma hora tão romanesca da vida amorosa! Todavia à maneira que se aproximava vinha-lhe uma timidez, uma contração de acanhamento, como um plebeu que tem de subir, entre alabardeiros solenes, a escadaria de um palácio. Imaginava Basílio esperando-a estendido num divã de seda; e quase receava que a sua simplicidade burguesa, pouco experiente, não achasse palavras bastante finas ou carícias bastante exaltadas. Ele devia ter conhecido mulheres tão belas, tão ricas, tão educadas no amor! Desejava chegar num cupê seu, com rendas de centos de mil réis, e ditos tão espirituosos como um livro...
A carruagem parou ao pé de uma casa amarelada, com uma portinha pequena. Logo à entrada um cheiro mole e salobre enojou-a. A escada, de degraus gastos, subia ingrememente, apertada entre paredes onde a cal caía, e a umidade fizera nódoas. No patamar da sobreloja, uma janela com um gradeadozinho de arame, parda do pó acumulado, coberta de teias de aranha, coava a luz suja do saguão. E por trás de uma portinha, ao lado, sentia-se o ranger de um berço, o chorar doloroso de uma criança.
Mas Basílio desceu logo, com o charuto na boca, dizendo baixo:
— Tão tarde! Sobe! Pensei que não vinhas. O que foi?
A escada era tão esguia, que não podiam subir juntos. E Basílio, caminhando adiante, de esguelha:
— Estou aqui desde a uma hora, filha! Imaginei que te tinhas esquecido da rua...
Empurrou uma cancela, fê-la entrar num quarto pequeno, forrado de papel às listras azuis e brancas.
Luísa viu logo, ao fundo, uma cama de ferro com uma colcha amarelada, feita de remendos juntos de chitas diferentes; e os lençóis grossos, de um branco encardido e mal lavado, estavam impudicamente entreabertos...
Fez-se escarlate, sentou-se, calada, embaraçada. E os seus olhos muito abertos, iam-se fixando - nos riscos ignóbeis da cabeça dos fósforos, ao pé da cama; na esteira esfiada, comida, com uma nódoa de tinta entornada; nas bambinelas da janela, de uma fazenda vermelha, onde se viam passagens; numa litografia, onde uma figura, coberta de uma túnica azul flutuante, espalhava flores voando... Sobretudo uma larga fotografia, por cima do velho canapé de palhinha, fascinava-a: era um indivíduo atarracado, de aspecto hílare e alvar, com a barba em colar, o feitio de um piloto ao domingo; sentado, de calças brancas, com as pernas muito afastadas, pousava uma das mãos sobre um joelho, e a outra muito estendida assentava sobre uma coluna truncada; e por baixo do caixilho, como sobre a pedra de um túmulo, pendia de um prego de cabeça amarela, uma coroa de perpétuas!
— Foi o que se pode arranjar - disse-lhe Basílio. - E foi um acaso; é muito retirado, é muito discreto... Não é muito luxuoso...
— Não - fez ela, baixo. - Levantou-se, foi à janela, ergueu uma ponta da cortininha de cassa fixada à vidraça; defronte eram casas pobres; um sapateiro grisalho, batia a sola a uma porta; à entrada de uma lojita balouçava-se um ramo de carqueja ao pé de um maço de cigarros pendentes de um barbante; e, a uma janela, uma rapariga esguedelhada embalava tristemente no colo uma criança doente que tinha crostas grossas de chagas na sua cabecinha cor de melão.
Luísa mordia os beiços; sentia-se entristecer. Então nós de dedos bateram discretamente à porta. Ela assustou-se, desceu rapidamente o véu. Basílio foi abrir. Uma voz adocicada, cheia de ss melífluos, ciciou baixo. Luísa ouviu vagamente: - Sossegadinhos, suas chavezinhas...
— Bem, bem! - disse Basílio apressado, batendo com a porta.
— Quem é?
— É a patroa.
O céu pusera-se a enegrecer; já a espaços grossas gotas de chuva se esmagavam nas pedras da rua; e um tom crepuscular fazia o quarto mais melancólico.
— Como descobriste tu isto? - perguntou Luísa, triste.
— Inculcaram-mo.
Outra gente, então, tinha vindo ali, amado ali? - pensou ela. E a cama pareceu-lhe repugnante.
— Tira o chapéu - disse Basílio, quase impaciente -, estás-me a fazer aflição com esse chapéu na cabeça.
Ela soltou devagar o elástico que o prendia, foi pô-lo no canapé de desconsoladamente.
Basílio tomou-lhe as mãos, e atraindo-a, sentando-se na cama:
— Estás tão linda! - Beijou-lhe o pescoço, encostou a cabeça ao peito dela. E com a vista muito quebrada:
— O que eu sonhei contigo esta noite!
Mas de repente, uma forte pancada de chuva fustigou os vidros. E imediatamente bateram à porta, com pressa.
— Que é? - bradou Basílio furioso.
A voz cheia de ss explicou que esquecera um cobertor na varanda que estava à secar. Se se encharcasse, que perdição!...
— Eu lhe pagarei o cobertor, deixe-me! - berrou Basílio.
— Dá-lhe o cobertor...
— Que a leve o diabo!
E Luísa, sentindo um arrepio de frio nos seus ombros nus, abandonava-se com uma vaga resignação, entre os joelhos de Basílio - vendo constantemente voltada para si a face alvar do piloto.
Assim um iate que aparelhou nobremente para uma viagem romanesca vai encalhar, ao partir, nos lodaçais do rio baixo; e o mestre aventureiro, que sonhava com os incensos e os almíscares das florestas aromáticas, imóvel sobre o seu tombadilho, tapa o nariz aos cheiros dos esgotos.
Apenas Luísa começou a sair todos os dias, Juliana pensou logo: 'Bem, vai o gajo!"
E a sua atitude tornou-se ainda mais servil. Era com um sorriso de baixeza a abrir a porta, alvoroçada, quando Luísa voltava às cinco horas. E que zelo! Que exatidões! Um botão que faltasse, uma fita que se extraviava, e eram mil perdões, minha senhora", "desculpe por esta vez", muitas lamentações humildes. Interessava-se com devoção pela saúde dela, pela sua roupa, pelo que tinha para jantar...
Todavia, desde as idas ao Paraíso, o seu trabalho aumentara: todos os dias agora tinha de engomar; muitas vezes era preciso ensaboar à noite colares, rendinhas, punhos, numa bacia de latão, até às onze horas. As seis da manhã, mais cedo, já estava com o ferro às voltas. E não se queixava; até dizia a Joana:
— Ai! É um regalo ver assim uma senhora asseada!... Que as há! Credo! Não, não é por dizer, mas até me dá gosto. Depois, graças a Deus, agora tenho saúde; o trabalho não me assusta!
Não tornara a resmungar da patroa. Afirmava mesmo à Joana repetidamente:
— A senhora, ai, é uma santa! Muito boa de aturar... Não a há melhor!
O seu rosto perdera alguma coisa do tom bilioso, da contração amarga. As vezes, ao jantar ou à noite, costurando calada ao pé de Joana, à luz do petróleo, vinham-lhe sorrisos súbitos, o olhar clareava-se-lhe numa dilatação jovial.
— A Sra. Juliana tem o ar de quem está a pensar em coisas boas...
— A malucar cá por dentro, Sra. Joana! - respondia com satisfação.
Parecia perder a inveja; ouviu mesmo falar com tranqüilidade do vestido de seda que estreou num dia de festa, em setembro, a Gertrudes do doutor. Disse apenas:
— Também um dia hei de estrear vestidos, e dos bons! Dos da modista!
Já outras vezes revelara por palavras vagas a idéia de uma abundância próxima. Joana até lhe dissera:
— A Sra. Juliana espera alguma herança?
— Talvez! - respondeu secamente.
E cada dia detestava mais Luísa. Quando pela manhã a via arrebicar-se, perfumar-se com água-de-colônia, mirar-se ao toucador cantarolando, saía do quarto porque lhe vinham venetas de ódio, tinha medo de estourar! Odiava-a pelas toaletes, pelo ar alegre, pela roupa branca, pelo homem que ia ver, por todos os seus regalos de senhora. "A cabra!" Quando ela saía ia espreitar, vê-la subir a rua, e fechando a vidraça com um risinho rancoroso:
— Diverte-te, piorrinha, diverte-te, que o meu dia há de chegar! Oh, se há de!
Luísa com efeito divertia-se. Saía todos os dias às duas horas. Na rua já se dizia que a do Engenheiro tinha o seu São Miguel.
Apenas ela dobrava a esquina o conciliábulo juntava-se logo a cochichar. Tinham a certeza que se ia encontrar com o peralta. Onde seria? - era a grande curiosidade da carvoeira.
— No hotel - murmurava o Paula. - Que nos hotéis é escândalo bravio. Ou talvez - acrescentava com tédio - nalguma dessas pocilgas da Baixa!
A estanqueira lamentava-a: uma senhora que era tão apropositada!
— Vaca solta lambe-se toda, Sra. Helena! - rosnava o Paula. - São todas o mesmo!
— Menos isso! - protestava a estanqueira. - Que eu sempre fui uma mulher honesta!
— E ela? - reclamava a carvoeira - ninguém tinha que lhe dizer!
— Falo da alta sociedade, das fidalgas, das que arrastam sedas! É uma cambada. Eu é que o sei! - E acrescentava gravemente: - No povo há mais moralidade. O povo é outra raça! - E com as mãos enterradas nos bolsos, as pernas muito abertas, ficava absorto, com a cabeça baixa, o olhar cravado no chão. - Se é! - murmurava. - Se é! - Como se estivesse positivamente achando as pedrinhas da calçada menos numerosas que as virtudes do povo!
Sebastião que tinha estado na quinta de Almada quase duas semanas, ficou aterrado quando, ao voltar, a Joana lhe deu as grandes "novidades": que a Luisinha agora saía todos os dias às duas horas, que o primo não voltara; a Gertrudes é que lho dissera; não se falava na rua noutra coisa...
— Então a pobre senhora nem sequer pode ir às lojas, aos seus arranjos! - exclamou Sebastião. - A Gertrudes é uma desavergonhada, e nem sei como a tia Joana consente que ela ponha aqui os pés. Vir com esses mexericos!...
— Cruzes! Olha o destempero! - replicou muito escandalizada tia Joana. - Oh, menino, realmente... A pobre mulher disse o que ouviu na rua! Que ela até a defende; até ela é que a defende! Até se esteve a queixar que se fala! Que se fala! Boa! - E a tia Joana saiu, resmungando: - Olha o destempero, credo!
Sebastião chamou-a, aplacou-a:
— Mas quem fala, tia Joana?
— Quem? - E muito enfaticamente: - Toda a rua! Toda a rua! Toda a rua!
Sebastião ficou aniquilado. Toda a rua! Pudera! Se ela agora se punha a sair os dias; uma senhora, que quando estava Jorge não saía do buraco! A vizinhança que murmurara das visitas do outro naturalmente começava a comentar as saídas dela! Estava-se a desacreditar! E ele não podia fazer nada! Ir adverti-ta? Ter outra cena? Não podia.
Procurou-a. Não lhe queria decerto tocar em nada; ia só vê-la. Não estava. Voltou dai a dois dias. Juliana veio-lhe dizer à cancela, com o seu sorriso amarelado: "Foi-se agora mesmo, há um instantinho. Ainda a apanha à Patriarcal". Enfim, um dia encontrou-a ao princípio da Rua de São Roque. Luísa pareceu muito contente em o ver: - Por que se tinha demorado tanto em Almada? Que deserção!
Trazia carpinteiros; era necessário vigiar as obras. E ela?
— Bem. Um bocado aborrecida. O Jorge diz que ainda se demora. Tenho do muito só. Nem Julião, nem Conselheiro; ninguém. A D. Felicidade é que aparecido às vezes de fugida. Está agora sempre metida na Encarnação... Isto devota! - E riu.
Então onde ia?
— A umas comprazitas, à modista depois... - E apareça agora, Sebastião, hem?
— Hei de aparecer.
— À noite. Estou tão só! Tenho tocado muito, e o que me vale é o piano!
Nessa mesma tarde Sebastião recebeu uma carta de Jorge.
Tens visto a Luísa? Estive quase com cuidado, porque estive mais de cinco dias sem carta dela. De resto está preguiçosa como uma freira; quando escreve são quatro linhas porque está o correio a partir. Vai dizer ao correio que espere, que diabo! Queixa-se de se aborrecer, de estar só, que todos a abandonaram; que tem vivido como num deserto. Vê se lhe vais fazer companhia, coitada, etc.