O Primo Basílio (23 page)

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Authors: Eça de Queirós

BOOK: O Primo Basílio
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No dia seguinte ao anoitecer foi à casa dela. Apareceu-lhe muito vermelha, com os olhos estremunhados, de roupão branco. Tinha chegado muito cansada de fora; tinha-lhe dado o sono depois de jantar; adormecera sobre a causeuse... Que havia de novo? E bocejava.

Falaram das obras de Almada, do Conselheiro, de Julião; e ficaram calados. Havia um constrangimento.

Luísa então acendeu as velas no piano, mostrou-lhe a nova música que estudava, a Medgé de Gounod; mas havia uma passagem em que se embrulhava sempre; pediu a Sebastião que a tocasse, e junto do piano, batendo o compasso com o pé, acompanhava baixo a melodia, a que a execução de Sebastião dava um encanto penetrante. Quis tentar depois, mas enganou-se, zangou-se; atirou a música para o lado, veio sentar-se no sofá, dizendo:

— Quase nunca toco! Estão-se-me a enferrujar os dedos!...

Sebastião não se atrevia a perguntar pelo primo Basílio. Luísa não lhe pronunciou sequer o nome. E Sebastião, vendo naquela reserva uma diminuição de confiança ou um resto persistente de despeito, disse que tinha de ir à Associação Geral da Agricultura; e saiu muito desconsolado.

Cada dia que se seguiu trouxe-lhe a sua inquietação diferente. As vezes era a tia Joana que lhe dizia à tarde: A Luisinha lá saiu hoje outra vez! Por este calor, até pode apanhar alguma! Credo!" Outras, era o conciliábulo dos vizinhos, que avistava de longe, e que decerto estavam a cortar na pele da pobre senhora! Parecia-lhe tudo aquilo exatamente a "Ária da calúnia" no Barbeiro de Sevilha: a calúnia ao principio leve como o frêmito das asas de um pássaro, subindo num crescendo aterrador até estalar como um trovão!

Dava agora voltas para não passar na rua, diante do Paula e da estanqueira; tinha vergonha deles! Encontrara o Teixeira Azevedo, que lhe perguntara:

— Então o Jorge quando vem? Que diabo! O rapaz fica por lá!

E aquela observação trivial aterrou-o.

Enfim, um dia, mais apoquentado, foi procurar Julião. Encontrou-o no seu quarto andar, em mangas de camisa e em chinelas, enxovalhado e esguedelhado rodeado de papelada, com uma chocolateirinha de café ao pé, trabalhando. O soalho negro estava cheio de pontas de cigarros; ao canto estava embrulhada roupa suja; sobre a cama desfeita havia livros abertos; - e um cheiro relentado saía do desmazelo das coisas. A janela de peitoril dava para o saguão, de onde vinha o cantar estridente de uma criada, e o ruído areado do esfregar de tachos.

Julião, apenas ele entrou, ergueu-se, espreguiçou-se, enrolou um cigarro, e declarou que estava a trabalhar desde às sete!... Hem? Era bonito! Para que soubesse o Sr. Sebastião!

— De resto chegaste a propósito. Estava para mandar à tua casa... Devia receber aí um dinheiro e não veio. Dá cá uma libra.

E imediatamente começou a falar da tese. A coisa saía!

Leu-lhe parágrafos do prólogo com uma deleitação paternal, e, muito satisfeito, na abundância de confiança que dá a excitação do trabalho, com grandes passadas pelo quarto:

— Hei de lhes mostrar que ainda há portugueses em Portugal, Sebastião! Hei de os deixar de boca aberta! Tu verás!

Sentou-se; pôs-se a numerar as folhas escritas, assobiando. Sebastião, então, com timidez, quase vexado de perturbar com as suas preocupações domésticas aqueles interesses científicos, disse baixo:

— Pois eu vim-te falar por causa lá da nossa gente...

Mas a porta abriu-se com força, e um rapaz de barba desleixada, e olhar um pouco doido, entrou; era um estudante da Escola, amigo de Julião, e quase imediatamente os dois recomeçaram uma discussão que tinham travado de manhã, e que fora interrompida às onze horas, quando o rapaz de olhar doido a almoçar à Áurea.

— Não, menino! - exclamava o estudante, exaltado. - Estou na minha! A Medicina é uma meia ciência; a Fisiologia é outra meia ciência! São ciências conjeturais, porque nos escapa a base, conhecer o princípio da vida!

E cruzando os braços diante de Sebastião, bradou-lhe:

— Que sabemos nós do princípio da vida?

Sebastião, humilhado, baixou os olhos.

Mas Julião indignava-se:

— Estás desmoralizado pela doutrina vitalista, miserável! - Trovejou contra o Vitalismo, que declarou "contrário ao espírito científico". Uma teoria que pretende que as leis que governam os corpos brutos não são as mesmas que governam os corpos vivos - é uma heresia grotesca - exclamava. - E Bichat que a proclama é uma besta!

O estudante, fora de si, bradou - que chamar a Bichat uma besta era simplesmente de um alarve.

Mas Julião desprezou a injúria, e continuou, exaltado nas suas idéias:

— Que nos importa a nós o princípio da vida? Importa-me tanto como a primeira camisa que vesti! O principio da vida é como outro qualquer princípio:

um segredo! Havemos de ignorá-lo eternamente! Não podemos saber nenhum principio. A vida, a morte, as origens, os fins, mistérios! São causas primárias com que não temos nada a fazer, nada! Podemos batalhar séculos, que não avançamos uma polegada. O físiologista, o químico, não têm nada com os princípios das coisas; o que lhes importa são os fenômenos! Ora, os fenômenos e as suas causas imediatas, meu caro amigo, podem ser determinadas com tanto rigor nos corpos brutos, como nos corpos vivos - numa pedra, como num desembargador! E a Fisiologia e a Medicina são ciências tão exatas como a Química! Isto já vem de Descartes!

Travaram então um berreiro sobre Descartes. E imediatamente, sem que Sebastião atônito tivesse descoberto a transição, encarniçaram-se sobre a idéia de Deus.

O estudante parecia necessitar Deus para explicar o Universo. Mas Julião atacava Deus com cólera: chamava-lhe uma hipótese safada", "uma velha caturrice do partido miguelista"! E começaram a assaltar-se sobre a questão social, como dois galos inimigos.

O estudante, com os olhos esgazeados, sustentava, dando punhadas sobre a mesa, o princípio da autoridade! Julião berrava pela "anarquia individual!" E depois de citarem com fúria Proudhon, Bastiat, Jouffroy romperam em personalidades. Julião, que dominava pela estridência da voz, censurou violentamente ao estudante - as suas inscrições a seis por cento, o ridículo de ser filho de um corretor de fundos, e o bife de proprietário que vinha de comer na Áurea!

Olharam-se, então, com rancor.

Mas daí a momentos o estudante deixou cair com desdém algumas palavras sobre Claude Bernard, e a questão recomeçou, furiosa.

Sebastião tomou o chapéu.

— Adeus - disse baixo.

— Adeus, Sebastião, adeus - disse prontamente Julião.

Acompanhou-o ao patamar.

— E quando quiseres que eu fale a meu primo... - murmurou Sebastião.

— Pois sim, veremos, eu pensarei - disse Julião com indiferença, como se o orgulho do trabalho lhe tivesse dissipado o terror da injustiça.

Sebastião foi descendo as escadas, pensando: "Não se lhe pode falar em nada, agora!"

De repente veio-lhe uma idéia: se fosse ter com D. Felicidade, abrir-se com ela! D. Felicidade era espalhafatona, um pouco tonta, mas era uma mulher de idade, íntima de Luísa; tinha mais autoridade, mais habilidade mesmo...

Decidiu-se logo; tomou um trem, foi à Rua de São Bento.

A criada de D. Felicidade apareceu-lhe, desolada e lacrimosa:

— Pois não sabe?

— Ai! Até admira!

— Mas o quê?

— A senhora! Uma desgraça assim! Torceu um pé na Encarnação, deu uma n estado muito mal, muito mal.

— Aqui?

— Na Encarnação. Nem pode sair. Está com a senhora D. Ana Silveira. Uma desgraça assim! E está num frenesi!

— Mas quando foi?

— Anteontem à noite.

Sebastião saltou para o trem, mandou bater para casa de Luísa. D. Felicidade, doente, na Encarnação! Mas então Luísa podia bem sair todos os dias! Ia vê-la, fazer-lhe companhia, tratar dela!...

A vizinhança não tinha que rosnar! Ia ver a pobre doente!...

Eram duas horas quando a parelha estacou à porta de Luísa. Encontrou-a, que descia a escada, vestida de preto, de luva gris-perle, com um véu negro.

— Ah! Suba, Sebastião, suba! Quer subir?

Parara nos degraus, com uma corzinha no rosto, um pouco embaraçada.

— Não, obrigado. Vinha dizer-lhe... Não sabe? A D. Felicidade...

— O quê?

— Torceu um pé. Está mal.

— Que me diz?

Sebastião deu os pormenores.

— Vou lá já.

— Deve ir. Eu não posso ir, não entram homens. Coitada! Diz que está mal. - Acompanhou-a até à esquina da rua, ofereceu-lhe mesmo a tipóia: - E muitos recados que tenho pena de a não ver!... Pobre senhora! E diz que está num frenesi!

Viu-a afastar para a Patriarcal, e, admirando a graça da sua figura, esfregava as mãos satisfeito.

Estavam justificadas, santificadas mesmo aquelas passeatas todos os dias! Ia ser a enfermeira da pobre D. Felicidade! Era necessário que todos soubessem: o Paula, a estanqueira, a Gertrudes, as Azevedos, todos, de modo que quando a vissem de manhã subir a rua, dissessem: "Lá vai fazer companhia à doente! Santa senhora".

O Paula estava à porta da loja - e Sebastião com uma idéia súbita, entrou. Estava-se estimando de se sentir tão fecundo em expedientes, tão hábil!

Deitou um pouco O chapéu para a nuca, e mostrando com o guarda-sol o painel que representava D. João VI:

— Quanto quer vossemecê por isto, ó Sr. Paula?

O Paula ficou surpreendido:

— O Sr. Sebastião está a brincar?

Sebastião exclamou:

— A brincar? - Falava muito sério! Queria uns quadros para a sala de entrada, em Almada; mas velhos, sem caixilho, para dizerem bem sobre um papel escuro. - Como isto! Estou a brincar! Ora essa, homem!

— Desculpe, Sr. Sebastião... Pois nesse caso há por aí alguns painéis a calhar.

— Este D. João VI agrada-me. Quanto custa isto?

O Paula disse, sem hesitar:

— Sete mil e duzentos. Mas é obra de mestre.

Era uma tela desbotada de tom defumado, onde uns restos de face avermelhada, com uma cabeleira em cachos, sobressaíam vagamente sobre um fundo sombrio. Um vermelhão baço indicava o veludo de uma casaca de corte; a pança saliente e ostentosa enchia um colete esverdeado. E a parte mais conservada da tela era, ao lado sobre um coxim, a coroa real, que o artista trabalhara com uma minuciosidade entusiasta, ou por preocupação de idiota, ou por adulação de cortesão.

Sebastião achava caro; mas o Paula mostrou-lhe o preço escrito por trás, numa tirinha de papel; espanejou a tela com amor; indicou as belezas, falou na sua honestidade; deprimiu outros vendedores de móveis, que tinham a consciência nas palmilhas; jurou que o retrato pertencera ao Paço de Queluz, e ia atacar as questões públicas - quando Sebastião disse resumindo:

— Bem, pois mande-mo logo, fico com ele. E mande a conta.

— Leva uma rica obra!

Sebastião agora olhava em redor. Queria falar do pé torcido de D. Felicidade, e procurava uma transição. Examinou umas jarras da Índia, um tremó; e avistando uma poltrona de doente:

— Aquilo é que era bom para a D. Felicidade! - exclamou logo - aquela cadeira! Boa cadeira!

O Paula arregalou os olhos.

— Para a D. Felicidade Noronha - repetiu Sebastião. - Para estar deitada... Pois não sabia, homem? Partiu um pé; tem estado muito mal.

— A D. Felicidade, a amiga de cá? - e indicou com o polegar a casa do Engenheiro.

— Sim, homem! Quebrou um pé na Encarnação. Até lá ficou. A D. Luísa vai para lá fazer-lhe companhia todos os dias. Agora ia ela para lá...

— Ah! - fez o Paula lentamente. E depois de uma pausa: - Mas eu ainda a vi entrar para cá há de haver oito dias.

— Foi anteontem. - Tossiu e acrescentou, voltando o rosto, olhando muito umas gravuras: - De resto a D. Luísa já ia todos os dias à Encarnação, mas era para ver a Silveira, a D. Ana Silveira, que esteve mal. Coitada, há três semanas que tem passado uma vida de enfermeira. Não sai da Encarnação! E agora é a D.

Felicidade. Não é má maçada!

— Pois não sabia, não sabia - murmurava o Paula, com as mãos enterradas nos bolsos.

— Mande-me o D. João VI, hem?

— Às ordens, Sr. Sebastião.

Sebastião foi para casa. Subiu à sala; e atirando o chapéu para o sofá: "Bem, pensou, "agora ao menos estão salvas as aparências!" - Passeou algum com a cabeça baixa; sentia-se triste; porque o ter conseguido, por um justificar aqueles passeios para com a vizinhança, fazia-lhe parecer mais cruel a idéia de que os não podia justificar para consigo. Os comentários dos vizinhos iam findar por algum tempo, mas os seus?... Queria achá-los falsos, pueris, injustos; e, contra sua vontade, o seu bom senso e a sua retidão estavam sempre a revolvê-los baixo. Enfim, tinha feito o que devia! E com um gesto triste, falando só, no silêncio da sala:

— O resto é com a sua consciência!

Nessa tarde, na rua, sabia=se já que a D. Felicidade Noronha torcera um pé na Encarnação (outros diziam quebrara uma perna), e que a D. Luísa não lhe saia da cabeceira... O Paula declarara com autoridade:

— É de boa rapariga, é de muito boa rapariga!

A Gertrudes do doutor foi logo, à noitinha, perguntar à tia Joana, se era verdade da perna quebrada. A tia Joana corrigiu: era o pé, torcera o pé! E a Gertrudes veio dizer ao doutor, ao chá, que a D. Felicidade dera uma queda, que ficara em pedaços. - Foi na Encarnação - acrescentou. - Diz que anda tudo lá numa roda viva. A Luisinha até lá tem dormido...

— Pieguices de beatas! - rosnou com tédio o doutor.

Mas na rua todos a elogiavam. Mesmo, daí a dias, o Teixeira Azevedo (que apenas cumprimentava Luísa), tendo-a encontrado na Rua de São Roque, parou, e com uma cortesia profunda:

— Desculpe Vossência. Como vai a sua doente?

— Melhor, agradecida.

— Pois, minha senhora, tem sido de muita caridade, ir todos os dias por calor à Encarnação...

Luísa corou.

— Coitada! Não lhe falta companhia, mas...

— É de muita caridade, minha senhora - exclamou com ênfase. - Tenho-o dito por toda a parte. É de muita caridade. Um criado de Vossência!

E afastou-se comovido.

Luísa fora logo, com efeito, ver D. Felicidade. Tinha uma luxação simples; nos quartos da Silveira, com o pé em compressas de arnica, cheia de terror de perder a perna, passava o dia rodeada de amigas, chorando-se, saboreando os mexericos do recolhimento, e debicando petiscos.

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