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Authors: Eça de Queirós

O Primo Basílio (3 page)

BOOK: O Primo Basílio
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Procurou na algibeira do vestido: tirou o lenço, uma carteirinha, chaves, uma caixinha de pó-de-arroz; mas encontrou apenas um programa do Price.

Falou então do circo. - Uma sensaboria. O melhor era um rapaz que trabalhava no trapézio. Lindo rapaz, bem feito, uma perfeição!

E de repente:

— Então teu primo Basílio chega?

— Assim li hoje no Diário de Noticias. Fiquei pasmada!

— Ah! Outra coisa que te queria perguntar antes que me esqueça. Com que guarneceste tu aquele teu vestido de xadrezinho azul? Vou mandar fazer um assim.

Tinha-o guarnecido de azul também, um azul mais escuro.

— Vem ver. Vem cá dentro.

Entraram no quarto. Luísa foi descerrar a janela, abrir o guarda-vestidos. Era um quarto pequeno, muito fresco, com cretones de um azul pálido. Tinha um tapete barato, de fundo branco, com desenhos azulados. O toucador, alto, estava entre as duas janelas, sob um dossel de renda grossa, muito ornado de frascos facetados. Entre as bambinelas, em mesas redondas de pé de galo, plantas espessas, begônias, macomas, dobravam decorativamente a sua folhagem rica e forte, em vasos de barro vermelho vidrado.

Aqueles arranjos confortáveis lembraram decerto a Leopoldina felicidades tranqüilas. Pôs-se a dizer devagar, olhando em roda:

— E tu, sempre muito apaixonada por teu marido, hem? Fazes bem, filha, tu é que fazes bem!

Foi defronte do toucador aplicar pó-de-arroz no pescoço, nas faces:

— Tu é que fazes bem! - repetia. - Mas vá lá uma mulher prender-se a um homem como o meu!

Sentou-se na causeuse com um ar muito abandonado; vieram as queixas habituais sobre seu marido: era tão grosseiro! Era tão egoísta!

— Acreditarás que há tempos para cá, se não estou em casa ás quatro horas, não espera, põe-se à mesa, janta, deixa-me os restos! E depois desleixado, enxovalhado, sempre a cuspir nas esteiras... O quarto dele - nós temos dois quartos, como tu sabes - é um chiqueiro!

Luísa disse com severidade:

— Que horror! A culpa também é tua.

— Minha! - e endireitou-se, luziam-lhe os olhos, mais largos, mais negros.

— Não me faltava mais nada senão ocupar-me do quarto do homem!

Ah! Era muito desgraçada, era a mulher mais desgraçada que havia no mundo!

— Nem ciúmes tem, o bruto!

Mas Juliana entrou, tossiu, e arranjando ainda o colar e o broche:

— A senhora sempre quer que engome os coletes todos?

— Todos, já lhe disse. Hão de ficar à noite na mala antes de se ir deitar.

— Que mala? Quem parte? - perguntou Leopoldina.

— O Jorge. Vai às minas, ao Alentejo.

— Então estás só, posso vir ver-te! Ainda bem!

E sentou-se logo ao pé dela, com um olhar que se fizera doce.

— É que tenho tanto que contar! Se tu soubesses, filha!

— O quê? Outra paixão? - fez Luísa rindo.

A face de Leopoldina tornou-se grave.

Não era para rir. Estava de todo! Era por isso até que tinha vindo. Sentira-se tão só em casa, tão nervosa! - Vou até Luísa, vou palrar um bocado!

E com a Voz mais baixa, quase solene:

— Desta vez é sério, Luísa! - Deu os detalhes. Era um rapaz alto, louro, lindo! E que talento! E poeta! - Dizia a palavra com devoção, prolongando o som das sílabas. - E poeta!

Desapertou devagar dois botões do corpete, tirou do seio um papel dobrado. Eram versos.

E muito chegada para Luísa, com as narinas dilatadas pela delícia da sensação, leu baixo, com orgulho, com pompa:

— "A ti
Farol da Guia, 5 de junho
Quando cismo à hora do poente
Sobre os rochedos onde brame o mar..."

Era uma elegia. O rapaz contava, em quadras, as longas contemplações em que a via a ela, Leopoldina, "visão radiosa que deslizas leve", nas águas dormentes, nas vermelhidões do ocaso, na brancura das espumas. Era uma composição delambida, de um sentimentalismo reles, com um ar tísico, muito lisboeta, cheia de versos errados. E, terminando, dizia-lhe que não era "nos esplendores das salas" ou nos "bailes febricitantes" que gostava de a ver; era ali, naqueles rochedos,

Onde todos os dias ao sol posto
Eu vejo adormecer o mar gigante.

— Que bonito, hem!

Ficaram caladas, com uma comoçãozinha.

Leopoldina, com os olhos perturbados, repetia a data, amorosamente:

— Farol da Guia, 5 de junho!

Mas o relógio do quarto deu quatro horas. Leopoldina ergueu-se logo, atarantada, meteu o poema no seio.

Tinha de se ir já! Fazia-se tarde, senão o outro, punha-se a mesa. Tinha um ruivo assado para o jantar. E peixe frio era a coisa mais estúpida!

Adeus. Até breve, não? - E agora que Jorge ia para fora, havia de vir muito.- Adeus. Então a francesa, Rua do Ouro, por cima do estanque?

Luísa foi com ela até ao patamar. Leopoldina já no fundo da escada ainda parou gritou:

— Sempre te parece que guarneça o vestido de azul, hem?

Luísa debruçou-se sobre o corrimão:

— Eu assim fiz, é o melhor...

— Adeus! Rua do Ouro, por cima do estanque?

— Sim. Rua do Ouro. Adeus. - E com um gritinho: - Porta à direita. M.me François.

Jorge voltou às cinco horas, e logo da porta do quarto, pondo a bengala a um canto:

— Já sei que tiveste cá uma visita.

Luísa voltou-se, um pouco corada. Estava diante do toucador já penteada, com um vestido de linho branco, guarnecido de rendas

Era verdade, tinha vindo a Leopoldina. Juliana mandara-a entrar... Ficara mais contrariada! Era por causa da adresse da francesa dos chapéus. Tinha-se demorado dez minutos. - Quem te disse?

— Foi a Juliana; que a senhora D. Leopoldina tinha estado toda a tarde.

— Toda a tarde! Que tolice! Esteve dez minutos, se tanto!

Jorge tirava as luvas, calado. Chegou-se à janela, pôs-se a sacudir as duras folhas de uma begônia malhada de um vermelho doente, com uma baba prateada. Assobiava baixo; e parecia todo ocupado em conchegar um botão de amarilis aninhado entre a sua folhagem luzidia, como um pequenino coração assustado.

Luísa ia passando o seu medalhão de ouro numa longa fita de veludo preto, tinha uma tremura nas mãos, estava vermelha.

— O calor tem-lhes feito mal... - disse.

Jorge não respondeu. Assobiou mais alto, foi à outra janela, bateu com os dedos nas folhas elásticas de uma macoma de tons verdes e sangüíneos, e, alargando impacientemente o colarinho como um homem sufocado:

— Ouve lá, é necessário que deixes por uma vez de receber essa criatura. É necessário acabar por uma vez!

Luísa fez-se escarlate.

— É por causa de ti! É por causa dos vizinhos! É por causa da decência!

— Mas foi a Juliana... - balbuciou Luísa.

— Mandasse-a sair outra vez. Que estavas fora! Que estavas na China! Que estavas doente!

Parou, com um tom desconsolado, abrindo os braços:

— Minha rica filha, é que todo o mundo a conhece. É a Quebrais! É a Pão e Queijo! É uma vergonha!

Citava-lhe os seus amantes, exasperado: o Carlos Viegas, o magro, de bigode caído, que escrevia comédias para o Ginásio! O Santos Madeira, o picado das bexigas, com uma gaforinha! O Melchior Vadio, um gingão desossado, com um olhar de carneiro morto, sempre a fumar numa enorme boquilha! O Pedro Câmara, o bonito! O Mendonça dos calos! Tutti quanti!

E encolhendo os ombros, exasperado:

— Como se eu não percebesse que ela esteve aqui! Só pelo cheiro! Este horrível cheiro de feno! Vocês foram criadas juntas, etc.; tudo isso é muito bom. Hás de desculpar, mas se a encontro na escada, corro-a! Corro-a!

Parou um momento, e comovido:

— Ora, vamos, Luísa, confessa. Tenho ou não razão?

Luísa punha os brincos, ao espelho, atarantada:

— Tens - disse.

— Ah! Bem!

E saiu, furioso.

Luísa ficou imóvel. Uma lagrimazinha redonda, clara, rolava-lhe pela asa do nariz Assoou-se muito doloridamente. Aquela Juliana! Aquela bisbilhoteira! De má! Para fazer cizânia!

Veio-lhe então uma cólera. Foi ao quarto dos engomados, atirou com a porta:

— Para que foi você dizer quem esteve ou quem deixou de estar?

Juliana, muito surpreendida, pousou o ferro:

— Pensei que não era segredo, minha senhora.

— Está claro que não! Tola! Quem lhe diz que era segredo? E para que mandou entrar? Não lhe tenho dito muitas vezes que não recebo a senhora D. Leopoldina?

— A senhora nunca me disse nada - replicou, toda ofendida, cheia de verdade.

— Mente! Cale-se!

Voltou-lhe as costas; veio para o quarto, muito nervosa, foi encostar-se à vidraça.

O sol desaparecera; na rua estreita havia uma sombra igual, de tarde sem vento; pelas casas, de uma edificação velha, escuras estavam abertas as varandas onde em vasos vermelhos se mirrava alguma velha planta miserável, manjericão ou cravo; ouvia-se, no teclado melancólico de um piano, a Oração de uma virgem, tocada por alguma menina, no sentimentalismo vadio do domingo; e na sua janela, defronte, as quatro filhas do Teixeira Azevedo, magrinhas, com os cabelos muito riçados, as olheiras pisadas, passavam a sua tarde de dia santo, olhando para a rua, para o ar, para as janelas vizinhas, cochichando se viam passar um homem - ou debruçadas, com uma atenção idiota, faziam pingar saliva sobre as pedras da calçada.

Jorge tinha razão, coitado! pensava Luísa. Mas, também, que podia ela fazer? Já não ia à casa de Leopoldina, tirara o seu retrato do álbum da sala, vira-se obrigada a confessar-lhe a repugnância de Jorge, tinham chorado ambas, até! Coitada! Só a recebia de longe a longe, uma raridade, um momento! E enfim, depois de ela estar na sala, não a havia de ir empurrar pela escada abaixo!

Um homem grosso, de pernas tortas, curvado sob um realejo, apareceu então ao alto da rua; as suas barbas pretas tinham um aspecto feroz; parou, pôs-se a voltear a manivela, levantando em redor, para as janelas, um sorriso triste de dentes brancos e a "Casta Diva", com uma sonoridade metálica e seca, muito tremida espalhou-se pela rua.

Gertrudes, a criada e a concubina do doutor de Matemática, veio encostar logo aos caixilhos estreitos da janela a sua vasta face trigueira de quarentona farta e estabelecida; adiante, na sacada aberta de um segundo andar, debruçou-se a figura do Cunha Rosado, magro e chupado, com um boné de borla, o aspecto desconsolado do doente de intestinos, conchegando com as mãos transparentes o robe de chambre ao ventre. Outras faces enfastiadas mostraram-se entre as bambinelas de cassa.

Na rua, a estanqueira chegou-se à porta, vestida de luto, estendendo o seu carão viúvo, os braços cruzados sobre o xale tingido de preto, esguia nas longas saias escoadas. Da loja, por baixo da Casa Azevedo, veio a carvoeira, enorme de gravidez bestial, o cabelo esguedelhado em repas secas, a cara oleosa e enfarruscada, com três pequenos meio nus, quase negros, chorões e hirsutos, que se lhe penduravam da saia de chita. E o Paula, com loja de trastes velhos, adiantou-se até ao meio da rua; a pala de verniz do seu boné de pano preto nunca se erguia de cima dos olhos; escondia sempre as mãos, como para ser mais reservado, por trás das costas, debaixo das abas do seu casaco de cotim branco; o calcanhar sujo da meia saía-lhe para fora da chinela bordada a miçanga; e fazia roncar o seu pigarro crônico de um modo despeitado. Detestava os reis e os padres. O estado das coisas públicas enfurecia-o. Assobiava freqüentemente a Maria da Fonte, e mostrava-se nas suas palavras, nas suas atitudes, um patriota exasperado.

O homem do realejo tirou o seu largo chapéu desabado e, tocando sempre, ia-o estendendo em redor para as janelas, com um olhar necessitado. As Azevedos tinham logo fechado violentamente a vidraça. A carvoeira deu-lhe uma moeda de cobre; mas interrogou-o: quis decerto saber de que país era, por que estradas tinha vindo, e quantas peças tinha o instrumento.

Gente endomingada começava a recolher, com um ar derreado do longo passeio, as botas empoeiradas; mulheres de xale, vindas das hortas, traziam ao colo as crianças adormecidas da caminhada e do calor; velhos plácidos, de calça branca, o chapéu na mão, gozavam a frescura, dando um giro no bairro: pelas janelas, bocejava-se; o céu tomava uma cor azulada e polida, como uma porcelana; um sino repicava a distância o fim de alguma festa de igreja; e o domingo terminava, com uma serenidade cansada e triste.

— Luísa - disse a voz de Jorge.

Ela voltou-se com um vago - "bem"?

— Vamos jantar, filha, são sete horas.

No meio do quarto tomou-a pela cinta e falando-lhe baixo junto à face:

— Tu zangaste-te há bocado?

— Não! Tu tens razão. Conheço que tens razão.

— Ah! - fez ele com um tom vitorioso, muito satisfeito. - Está claro,

Quem melhor conselheiro e bom amigo

Que o marido que a alma m'escolheu?

E com uma ternura grave:

— Minha querida filha, esta nossa casinha é tão honesta que é uma dor de alma ver entrar essa mulher aqui, com o cheiro de feno, do cigarro e do resto!... Ma, di questo non parlaremo più, o donna mia! À sopa!

Capítulo dois

 

Aos domingos à noite havia em casa de Jorge uma pequena reunião, uma cavaqueira, na sala, em redor do velho candeeiro de porcelana cor-de-rosa. Vinham apenas os íntimos. O "Engenheiro", como se dizia na rua, vivia muito ao seu canto, sem visitas. Tomava-se chá, palrava-se. Era um pouco à estudante. Luísa fazia croché, Jorge cachimbava.

O primeiro a chegar era Julião Zuzarte, um parente muito afastado de Jorge e seu antigo condiscípulo nos primeiros anos da Politécnica. Era um homem seco e nervoso, com lunetas azuis, os cabelos compridos caídos sobre a gola. Tinha o curso de cirurgião da Escola. Muito inteligente, estudava desesperadamente, mas, como ele dizia, era um tumba. Aos trinta anos, pobre, com dívidas, sem clientela, começava a estar farto do seu quarto andar na Baixa, dos seus jantares de doze vinténs, do seu paletó coçado de alamares; e entalado na sua vida mesquinha, via os outros, os medíocres, os superficiais, furar, subir, instalar-se à larga na prosperidade! "Falta de chance", dizia. Podia ter aceitado um partido da Câmara numa vila da província, com pulso livre, ter uma casa sua, a sua criação no quintal. Mas tinha um orgulho resistente, muita fé nas suas faculdades, na sua ciência, e não se queria ir enterrar numa terriola adormecida e lúgubre, com três ruas onde os porcos fossam. Toda a província o aterrava: via-se lá obscuro, jogando a manilha na Assembléia, morrendo de caquexia. Por isso não "arredava pé"; e esperava, com a tenacidade do plebeu sôfrego, uma clientela rica, uma cadeira na Escola, um cupê para as visitas, uma mulher loura com dote. Tinha certeza do seu direito a estas felicidades, e como elas tardavam a chegar ia-se tornando despeitado e amargo; andava amuado com a vida; cada dia se prolongavam mais os seus silêncios hostis, roendo as unhas; e, nos dias melhores, não cessava de ter ditos secos, tiradas azedadas - em que a sua voz desagradável caía como um gume gelado.

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