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Authors: Eça de Queirós

O Primo Basílio (5 page)

BOOK: O Primo Basílio
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O Conselheiro acudiu, com a mão espalmada:

— Cuidado, Sr. Ledesma, cuidado! Prudência com esses excitantes! Por quem é, prudência!

— A mim não me faz mal, Sr. Conselheiro - disse sorrindo. - Escrevo em três horas! Venho de lho mostrar agora. Até o tenho aqui...

— Leia, Sr. Ernesto, leia! - exclamou logo D. Felicidade.

Que lesse! Que lesse! Por que não lia?

Era uma maçada!... Era um rascunho... Enfim, como queriam!... E radiante desdobrou, no silêncio, uma grande folha de papel azul pautado.

— Eu peço desculpa. Isto é um borrão. A coisa não está ainda com todos os ff e rr. - Fez então voz teatral: - ÁGATA!... É a mulher; isto aqui é a cena com o marido, o marido já sabe tudo...

"ÁGATA (caindo de joelhos aos pés de Júlio)

"- Mas mata-me! Mata-me, por piedade! Antes a morte, que ver, com esses desprezos, o coração rasgado fibra a fibra!

"JÚLIO

"- E não me rasgaste tu também o coração? Tiveste tu piedade? Não. Retalhaste-mo! Meu Deus, eu que a julgava pura, nessas horas em que arrebatados..."

O reposteiro franziu-se. Sentiu-se um fino tilintar de chávenas. Era Juliana, de avental branco, com o chá.

— Que pena! - exclamou Luísa. - Depois do chá se lê. Depois do chá.

Emesto dobrou o papel, e, com um olhar de lado para Juliana, rancoroso:

— Não vale a pena, prima Luísa!

— Ora essa! É lindo! - afirmou D. Felicidade.

Juliana pousava sobre a mesa o prato das fatias, os biscoitos de Oeiras, os bolos do Cocó.

— Aqui tem o seu chá fraco, Conselheiro - dizia Luísa. - Sirva-se, Julião. As torradas ao Sr. Julião! Mais açúcar! Quem quer? Uma torrada, Conselheiro?

— Estou amplamente servido, minha prezada senhora - replicou, curvando-se.

E declarou, voltado para Ernestinho, que achava o diálogo opulento.

Mas, perguntaram, o que quer o empresário mais agora? Já tem a sala...

Ernestinho, de pé, excitado, com um bolo de ovos na ponta dos dedos, explicou:

— O que o empresário quer é que o marido lhe perdoe...

Foi um espanto:

— Ora essa! É extraordinário! Por quê?

— Então! - exclamou Ernestinho encolhendo os ombros - diz que o público que não gosta! Que não são coisas cá para o nosso país...

— A falar a verdade - disse o Conselheiro -, a falar a verdade, Sr. Ledesma, o nosso público não é geralmente afeto a cenas de sangue.

— Mas não há sangue, Sr. Conselheiro! - protestava Ernestinho erguendo-se sobre os bicos dos sapatos -, mas não há sangue! É com um tiro! E com um tiro pelas costas, Sr. Conselheiro!

Luísa fez a D. Felicidade - "psiu!" e, num aparte, com um sorriso.

— Desses bolinhos de ovos. São muito frescos.

Ela respondeu, com uma voz lamentosa:

— Ai, filha, não!

E indicou o estômago, compungidamente.

No entanto o Conselheiro aconselhava a Ernestinho a demência; tinha-lhe posto a mão no ombro paternalmente, e com uma voz persuasiva:

— Dá mais alegria à peça, Sr. Ledesma. O espectador sai mais aliviado! Deixe sair o espectador aliviado!

— Mais um bolinho, Conselheiro?

— Estou repleto, minha prezada senhora.

E, então, invocou a opinião de Jorge. Não lhe parecia que o bom Ernesto devia perdoar?

— Eu, Conselheiro? De modo nenhum. Sou pela morte. Sou inteiramente pela morte. E exijo que a mates, Ernestinho!

D. Felicidade acudiu, toda bondosa:

— Deixe falar, Sr. Ledesma. Está a brincar. E ele então que é um coração de anjo!

— Está enganada, D. Felicidade - disse Jorge, de pé diante dela. - Falo sério e sou uma fera! Se enganou o marido, sou pela morte. No abismo, na sala, na rua, mas que a mate. Posso lá consentir que, num caso desses, um primo meu, uma pessoa da minha família, do meu sangue, se ponha a perdoar como um lamecha! Não! Mata-a! É um princípio de família. Mata-a quanto antes!

— Aqui tem um lápis, Sr. Ledesma - gritou Julião, estendendo-lhe uma lapiseira.

O Conselheiro, então, interveio grave:

— Não - disse -, não creio que o nosso Jorge fale sério. É muito instruído para ter idéias tão...

Hesitou, procurou o adjetivo. Juliana pôs-se-lhe diante com uma bandeja, onde um macaco de prata se agachava comicamente sob um vasto guarda-sol eriçado de palitos. Tomou um, curvou-se, e concluiu:

— ...tão anticivilizadoras.

— Pois está enganado, Conselheiro, tenho-as - afirmou Jorge. - São as minhas idéias. E aqui tem, se em lugar de se tratar de um final de ato, fosse um caso da vida real, se o Ernesto viesse dizer-me: "Sabes, encontrei minha mulher..."

— Oh, Jorge! - disseram, repreensivamente.

Bem, suponhamos, se ele mo viesse dizer, eu respondia-lhe o mesmo. Dou a minha palavra de honra, que lhe respondia o mesmo: "Mata-a!"

Protestaram. Chamaram-lhe "tigre", "Otelo", "Barba-Azul". Ele ria, enchendo muito sossegadamente o seu cachimbo.

Luísa bordava, calada; a luz do candeeiro, abatida pelo abajur, dava aos seus cabelos tons de um louro quente, resvalava sobre a sua testa branca como sobre um marfim muito polido.

— Que dizes tu a isto? - disse-lhe D. Felicidade.

Ela ergueu o rosto, risonha, encolheu os ombros...

E o Conselheiro logo:

— A senhora D. Luísa diz com orgulho o que dizem as verdadeiras mães de família:

Impurezas do mundo não me roçam
Nem a fímbria da túnica sequer.

— Ora, muito boas noites - disse, à porta, uma voz grossa.

Voltaram-se.

Ó Sebastião! O Sr. Sebastião! Ó Sebastiarrão!

Era ele, Sebastião, o grande Sebastião, o Sebastiarrão, Sebastião tronco de árvore - o íntimo, o camarada, o inseparável de Jorge desde o Letim, na aula de Frei Libório aos paulistas.

Era um homem baixo e grosso, todo vestido de preto, com um chapéu mole desabado na mão. Começava a perder um pouco na frente os seus cabelos

castanhos e finos. Tinha a pele muito branca, a barba alourada e curta. Veio sentar-se ao pé de Luísa.

— Então de onde vem, de onde vem?

Vinha do Price. Rira muito com os palhaços. Houvera a brincadeira da pipa.

O seu rosto, em plena luz, tinha uma expressão honesta, simples, aberta: os olhos pequenos, azuis de um azul-claro, de uma suavidade séria, adoçavam-se muito quando sorria; e os beiços escarlates, sem películas secas, os dentes luzidios revelavam uma vida saudável e hábitos castos. Falava devagar, baixo, como se tivesse medo de se manifestar ou de fatigar. Juliana trouxera-lhe a sua e remexendo o açúcar com a colher direita, os olhos ainda a rir, um sorriso bom:

— A pipa tem muita graça! Muita graça!

Sorveu um gole de chá e depois de um momento:

— E tu, maroto, sempre partes amanhã? Não há umas tentaçõezinhas de ir por aí fora com ele, minha cara amiga?

Luísa sorriu. Tomara ela! Quem dera! Mas era uma jornada tão incômoda! Depois a casa não podia ficar só, não havia que fiar em criados...

— Está claro, está claro... - disse ele.

Jorge então, que abrira a porta do escritório, chamou-o:

— Ó Sebastião! Fazes favor?

Ele foi logo com o seu andar pesado, o largo dorso curvado; as abas do seu casaco malfeito tinham comprimento eclesiástico.

Entraram para o escritório.

Era uma saleta pequena, com uma estante alta e envidraçada, tendo em cima a estatueta de gesso, empoeirada e velha, de uma bacante em delírio. A mesa, com um antigo tinteiro de prata que fora de seu avô, estava ao pé da janela; uma coleção empilhada de Diários do Governo branquejava a um canto; por cima da cadeira de marroquim-escuro pendia, num caixilho preto, uma larga fotografia de Jorge; e sobre o quadro duas espadas encruzadas reluziam. Uma porta, no fundo, coberta com um reposteiro de baeta escarlate, abria para o patamar.

— Sabes quem esteve aí de tarde? - disse logo Jorge acendendo o cachimbo. - Aquela desavergonhada da Leopoldina! Que te parece, hem?

— E entrou? - perguntou Sebastião, baixo, correndo por dentro o pesado reposteiro de fazenda listrada.

— Entrou, sentou-se, esteve, demorou-se! Fez o que quis! A Leopoldina, a Pão e Queijo!

E arremessando o fósforo violentamente:

— Quando penso que aquela desavergonhada vem a minha casa! Uma criatura que tem mais amantes que camisas, que anda pelo Dafundo em troças, que passeava nos bailes, este ano, de dominó, com um tenor! A mulher do Zagalão, um devasso que falsificou uma letra!

E quase ao ouvido de Sebastião:

— Uma mulher que dormiu com o Mendonça dos calos! Aquele sebento do Mendonça dos calos!

Teve um gesto furioso; exclamou:

— E vem aqui, senta-se nas minhas cadeiras, abraça minha mulher, respira o meu ar!... Palavra de honra, Sebastião, se a pilho - procurou mentalmente, com o olhar aceso, um castigo suficiente - dou-lhe açoites!

Sebastião disse devagar:

— E o pior é a vizinhança...

— Está claro que é! - exclamou Jorge. - Toda essa gente aí pela rua abaixo sabe quem ela é! Sabem-lhe os amantes, sabem-lhe os sítios. É a Pão e Queijo! Todo o mundo conhece a Pão e Queijo!

— Má vizinhança... - disse Sebastião.

— De tremer!

Mas então! Estava acostumado à casa, era sua, tinha-a arranjado, era uma economia...

— Se não! Não parava aqui um dia!

Era um horror de rua! Pequena, estreita, acavalados uns nos outros! Uma vizinhança a postos, ávida de mexericos! Qualquer bagatela, o trotar de uma tipóia, e aparecia por trás de cada vidro um par de olhos repolhudos a cocar! E era logo um badalar de línguas por aí abaixo, e conciliábulos, e opiniões formadas, e fulano é indecente e fulana é bêbada...

— É o diabo! - disse Sebastião.

— A Luísa é um anjo, coitada - dizia Jorge passeando pela saleta -, mas tem coisas em que é criança! Não vê o mal. É muito boa, deixa-se ir. Com este caso da Leopoldina, por exemplo: foram criadas de pequenas, eram amigas, não tem coragem agora para a pôr fora! É acanhamento, é bondade. Ele compreende-se! Mas enfim as leis da vida têm as suas exigências!...

E depois de uma pausa:

— Por isso, Sebastião, enquanto eu estiver fora, se te constar que a Leopoldina vem por cá, avisa a Luísa! Porque ela é assim, esquece-se, não reflexiona. É necessário alguém que a advirta, que lhe diga: "Alto lá, isso não pode ser!" Que então cai logo em si, e é a primeira!... Vens por aí, fazes-lhe companhia, fazes-lhe música, e se vires que a Leopoldina aparece ao largo, tu logo: "Minha rica senhora, cuidado, olhe que isso não!" Que ela, sentindo-se apoiada, tem decisão. Se não, acanha-se, deixa-a vir. Sofre com isso, mas não tem coragem de lhe dizer: "Não te quero ver, vai-te!" Não tem coragem para nada; começam as mãos a tremer-lhe, a secar-se-lhe a boca... É mulher, é muito mulher... Não te esqueças, hem, Sebastião?

— Então havia de me esquecer, homem?

Sentiram então o piano na sala e a voz de Luísa ergueu-se, fresca e clara, cantando a Mandolinata:

Amici, la notte è bella,
La luna va spuntare.

— Fica tão só, coitada!... - disse Jorge.

Deu alguns passos pelo escritório, fumando, com a cabeça baixa:

— Todo o casal bem organizado, Sebastião, deve ter dois filhos! Deve ter pelo menos um!...

Sebastião coçou a barba em silêncio - e a voz de Luísa, elevando-se com certo esforço áspero, nos altos da melodia:

Di cà, di là per la città
Andiamo a transnottare...

Era uma tristeza secreta de Jorge - não ter um filho! Desejava-o tanto! Ainda em solteiro, nas vésperas do casamento, lá sonhava aquela felicidade: o seu filho! Via-o de muitas maneiras: ou gatinhando com as suas perninhas vermelhas, cheias de roscas, e os cabelos anelados, finos como fios de seda; ou rapaz forte, entrando da escola com os livros, alegre e de olho vivo, vindo mostrar-lhe as boas notas dos mestres; ou, melhor, rapariga crescida, clara e rosada, com um vestido branco, as duas tranças caídas, vindo pousar as mãos nos seus cabelos já grisalhos...

Vinha-lhe, às vezes, um medo de morrer sem ter tido aquela felicidade completadora!

Agora, na sala, a voz aguda de Ernestinho perorava; depois, no piano, Luísa recomeçou a Mandolinata, com um brio jovial.

A porta do escritório abriu-se, Julião entrou:

— Que estão vocês aqui a conspirar? Vou-me safar, que é tarde! Até à volta, meu velho, hem? Também ia contigo tomar ar, respirar, ver campos, mas...

E sorriu com amargura. - Àddio! Àddio!

Jorge foi alumiar-lhe ao patamar, abraçá-lo outra vez. Se quisesse alguma coisa do Alentejo...

Julião carregou o chapéu na cabeça:

— Dá cá outro charuto, por despedida! Dá cá dois!

— Leva a caixa! Eu em viagem só fumo cachimbo. Leva a caixa, homem!

Embrulhou-lha num Diário de Notícias; Julião meteu-a debaixo do braço, e descendo os degraus:

— Cuidado com as sezões, e descobre uma mina de ouro!

Jorge e Sebastião entraram na sala. Ernestinho, encostado ao piano, torcia as guias do bigodinho, e Luísa começava uma valsa de Strauss - o Danúbio azul.

Jorge disse, rindo, estendendo os braços:

— Uma valsa, D. Felicidade?

Ela voltou-se, com um sorriso. E por que não? Em nova era falada! Citou logo a valsa que dançara com o senhor D. Fernando, no tempo da Regência, nas Necessidades. Era uma valsa linda, dessa época: A pérola de Ofir.

Estava sentada ao pé do Conselheiro, no sofá. E como retomando um diálogo mais querido - continuou, baixo para ele, com uma voz meiga:

— Pois creia, acho-o com ótimas cores.

O Conselheiro enrolava vagarosamente o seu lenço de seda da Índia.

— Na estação calmosa passo sempre melhor. E D. Felicidade?

— Ai! Estou outra, Conselheiro! Muito boas digestões, muito livre de gases... Estou outra!

— Deus o queira, minha senhora, Deus o queira - disse o Conselheiro esfregando lentamente as mãos.

Tossiu, ia levantar-se, mas D. Felicidade pôs-se a dizer:

— Espero que esse interesse seja verdadeiro...

Corou. O corpete flácido do vestido de seda preta enchia-se-lhe com o arfar do peito.

O Conselheiro recaiu lentamente no sofá - e com as mãos nos joelhos:

— D. Felicidade sabe que tem em mim um amigo sincero...

Ela levantou para ele os seus olhos pisados, de onde saíam revelações de paixão e súplicas de felicidade:

— E eu, Conselheiro!...

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