O Primo Basílio (36 page)

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Authors: Eça de Queirós

BOOK: O Primo Basílio
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De resto ela mesma se esforçava por desenvolver aquela paixão, achando nela a compensação inefável das suas humilhações. Como lhe viera aquilo? Porque sempre o amara, decerto, reconhecia-o agora - mas não tanto, não tão exclusivamente! Nem ela sabia. Envergonhava-se mesmo, sentindo vagamente naquela violência amorosa pouca dignidade conjugal; suspeitava que o que tinha era apenas um capricho. Um capricho por seu marido! Não lhe parecia rigorosamente casto... Que lhe importava, de resto? Aquilo fazia-a feliz, prodigiosamente. Fosse o que fosse, era delicioso!

Ao princípio a idéia do outro pairava constantemente sobre esse amor, pondo um gosto infeliz em cada beijo, um remorso em cada noite. Mas pouco a pouco esquecera-o tanto, o outro - que a sua recordação, quando por acaso voltava, não dava mais amargor à nova paixão, que um torrão de sal pode dar às águas de uma torrente. Que feliz que seria - se não fosse a infame!

Era a infame que se sentia feliz! Às vezes só no seu quarto, punha-se a olhar em redor com um riso de avaro: desdobrava, batia os vestidos de seda; punha as botinas em fileira, contemplando-as de longe, extática; e debruçada sobre as gavetas abertas da cômoda contava, recontava a roupa branca, acariciando-a com o olhar de posse satisfeita. Como a da Piorrinha! - murmurava, afogada em júbilo.

— Ai! Estou muito bem! - dizia ela à tia Vitória.

— Que dúvida que estás! A carta não te rendeu um conto de réis, mas olha que te trouxe um par de regalos. E é que há de ser uma pingadeira; há de ser a boa peça de linho, o bom adereço, boas moedas... E ainda muito obrigada por cima. Carda-a; filha, carda-a!

Mas já havia pouco que cardar. E lentamente Juliana começou a pensar, que agora o que devia era gozar. Se tinha bons colchões - para que se havia de levantar cedo? Se tinha bons vestidos - por que não havia de ir espairecer para a rua? Toca a tirar partido!

Uma manhã que estava mais frio deixou-se ficar na cama até às nove horas, as janelas entreabertas, um bom raio de sol na esteira. Depois explicou secamente, que tinha estado com a dor. Daí a dois dias Joana, às dez horas, veio dizer baixo a Luísa:

— A Sra. Juliana ainda está na cama; está tudo por arrumar. Luísa ficou aterrada. O quê? Teria de sofrer os seus desmazelos, como as suas exigências?

Foi ao quarto dela:

— Então você levanta-se a estas horas?

— Foi o que me recomendou o médico - replicou muito insolente.

E daí por diante Juliana poucas vezes se erguia antes da hora de servir ao almoço. Luísa pediu logo a Joana que fizesse o serviço por ela: era por pouco tempo; a pobre criatura andava tão adoentada! E para acomodar a cozinheira deu-lhe meia moeda, para a ajuda de um vestido.

Juliana depois sem pedir licença, começou a sair. Quando voltava tarde para o jantar, não se desculpava.

Um dia Luísa não se conteve; disse-lhe, vendo-a passar no corredor e calçar as luvas pretas:

— Você vai sair?

Ela respondeu, muito atrevidamente:

— É como vê. Fica tudo arrumado, tudo o que é minha obrigação. E abalou, batendo os tacões.

Ora, não lhe faltava mais nada senão estar a constranger-se por causa da Piorrinha!

Joana começava a resmungar: "passa a sua vida na rua a Sra. Juliana e eu é que agüento..."

— Se você estivesse doente, também ninguém lhe ia à mão - acudiu Luísa; aflita, quando percebia estas revoltas. E presenteava-a. Dava-lhe mesmo vinho e sobremesa.

Havia agora um desperdício na casa. Os róis cresciam. Luísa andava sucumbida. - Como acabaria tudo aquilo?

Os desleixos de Juliana iam-se tornando graves.

Para sair mais cedo fazia apenas o essencial. Era Luísa que acabava de encher os jarros, que levantava muitas vezes a mesa do almoço, que levava para o sótão roupa suja que ficava pelos cantos...

Um dia Jorge que entrara às quatro horas, viu por acaso a cama por fazer. Luísa apressou-se a dizer que Juliana saíra, mandara-a ela à modista.

Daí a dias, eram seis horas, ainda não tinha voltado para servir ao jantar. Tinha ido à modista..., explicou Luísa.

— Mas se a Juliana é unicamente para ir à modista, então toma-se outra criada para fazer o serviço da casa - disse ele. Àquelas palavras secas Luísa fez-se pálida; duas lágrimas rolaram-lhe pela face

Jorge ficou pasmado. Que era? Que tinha? Luísa não se dominou, rompeu choro nervoso, histérico.

— Mas que é, minha filha, que tens? Zangaste-te?...

Ela não podia responder, sufocada. Jorge fez-lhe respirar vinagre de toalete, beijou-a muito.

Só quando o choro acalmou é que ela pôde dizer, com voz soluçada:

— Falaste-me tão secamente, e eu estou tão nervosa...

Ele riu, chamou-lhe tontinha, limpou-lhe as lágrimas - mas ficou inquieto.

Já então lhe notara certas tristezas, abatimentos inexplicáveis, uma irritabilidade nervosa... Que seria?

Para que Jorge não tornasse a surpreender os desleixos, Luísa começou a completar todas as manhãs os arranjos. Juliana percebeu logo; e muito tranqüilamente decidiu-se a deixar-lhe de cada vez mais com que se entreter. Ora não varria, depois não fazia a cama; enfim uma manhã não vazou as águas sujas. Luísa foi espreitar no corredor que Joana não descesse, não a visse, e fez ela mesma os despejos! Quando veio ensaboar as mãos, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto. Desejava morrer!... A que tinha chegado!...

D. Felicidade, um dia, tendo entrado de repente, surpreendera-a a varrer a sala.

— Que eu o faça - exclamou - que tenho só uma criada, mas tu!...

— A Juliana tinha tanto que engomar...

— Ai! Não lhe tires serviço do corpo, que não to agradece. E ainda se ri por cima! Se a pões em maus costumes!... Que agüente, que agüente!

Luísa sorriu, disse:

— Ora, por uma vez na vida!

A sua tristeza aumentava cada dia.

Refugiava-se então no amor de Jorge como na sua única consolação. A noite trazia-lhe a sua desforra; Juliana a essa hora dormia; não via a sua cara medonha; não a receava; não tinha de a elogiar; não trabalhava por ela! Era ela mesma, era Luísa, como dantes! Estava na sua alcova, com o seu marido, fechada por dentro, livre! Podia viver, rir, conversar, ter até apetite! E trazia com efeito às vezes marmelada e pão para o quarto - para fazer uma ceiazinha!

Jorge estranhava-a. "Tu de noite és outra", dizia. Chamava-lhe "ave noturna". Ela ria em saia branca pelo quarto, com os braços nus, o colo nu, o cabelo num rolo; e passarinhava, cantarolava, chalrava - até que Jorge lhe dizia:

— Passa da uma hora, filha!

Despia-se então rapidamente, caía-lhe nos braços.

Mas que acordar! Por mais clara que estivesse a manhã, tudo lhe parecia vagamente pardo. A vida sabia-lhe má. Vestia-se devagar, com repugnância - entrando no seu dia como numa prisão.

Perdera agora toda a esperança de se libertar! Às vezes ainda lhe vinha, como um relâmpago, a vontade de contar tudo a Sebastião, tudo. Mas quando o via, com o seu olhar honesto, abraçar Jorge, rirem ambos, e irem fumar o seu cachimbo, e ele tão cheio sempre de admiração por ela, parecia-lhe mais fácil sair para a rua, pedir dinheiro ao primeiro homem que encontrasse - que ir a Sebastião, ao íntimo de Jorge, ao melhor amigo da casa, dizer-lhe: "Escrevi uma carta a um homem, a criada roubou-ma!" Não, antes morrer naquela agonia de todos os dias, e ter ela mesma, de rastos, de lavar as escadas! As vezes refletia, pensava: - "Mas com que conto eu? -" Não sabia. Com o acaso, com a morte de Juliana... E deixava-se viver, gozando como um favor cada dia que vinha sentindo vagamente, à distância, alguma coisa de indefinido e de tenebroso onde se afundaria!

Por esse tempo Jorge começou a queixar-se que as suas camisas andavam mal-gomadas. A Juliana positivamente "perdia a mão". Um dia mesmo zangou-se; chamou-a, e atirando-lhe uma camisa toda amarrotada:

— Isto não se pode vestir, está indecente!

Juliana fez-se amarela; cravou em Luísa um olhar chamejante; mas, com os beiços trêmulos, desculpou-se: a goma era má, fora já trocá-la, etc.

Apenas, porém, Jorge saiu, veio como uma rajada ao quarto, fechou a porta e pôs-se a gritar - que a senhora sujava um ror de roupa, o senhor um ror de camisas, que se não tivesse alguém que a ajudasse não podia dar aviamento!... Quem queria negras trazia-as do Brasil!

— E não estou para aturar o gênio do seu marido, percebe a senhora? Se quer é arranjar quem me ajude.

Luísa disse simplesmente:

— Eu a ajudarei.

Tinha agora uma resignação muda, sombria, aceitava tudo!

Logo no fim da semana houve uma grande trouxa de roupa; e Juliana veio dizer que se a senhora passasse, ela engomava. Senão, não!

Estava um dia adorável; Luísa tencionava sair... Pôs um roupão, e, sem uma palavra, foi buscar o ferro.

Joana ficou atônita.

— Então a senhora vai engomar?

— Há uma carga, e a Juliana só não pode aviar tudo, coitada!

Instalou-se no quarto dos engomados - e estava laboriosamente passando a roupa branca de Jorge, quando Juliana apareceu, de chapéu.

— Você vai sair? - exclamou Luísa.

— É o que eu vinha dizer à senhora. Não posso deixar de sair. - E abotoava as luvas pretas.

— Mas as camisas, quem as engoma?

— Eu vou sair - disse a outra secamente.

— Mas, com os diabos, quem engoma as camisas?

— Engome-as a senhora! Olha a sarna!

— Infame! gritou Luísa. Atirou o ferro para o chão, saiu impetuosamente.

Juliana sentiu-a ir pelo corredor aos soluços.

Pôs-se logo a tirar o chapéu e as luvas, assustada. Daí a um momento ouviu a cancela da rua bater com força. Veio ao quarto, viu o roupão de Luísa arremessado, a chapeleira tombada. Onde teria ido? Queixar-se à polícia? Procurar o marido? Com os diabos! Fora estúpida, com o gênio! Arrumou depressa o quarto; foi-se pôr a engomar, com o ouvido à escuta, muito arrependida. Onde diabo teria ido? Devia ter cuidado! Se a impelisse a fazer algum despropósito, quem perdia? Ela, que teria de sair da casa, deixar o seu quarto, os seus regalos, a sua posição! Safa!

Luísa saíra, como louca. Na Rua da Escola um cupê passava, vazio: atirou-se para dentro, deu ao cocheiro a morada de Leopoldina. Leopoldina devia ter voltado do Porto; queria vê-la, precisava dela, sem saber para quê... Para desabafar! Pedir-lhe uma idéia, um meio de se vingar! Porque a vontade de se libertar daquela tirania - era agora menor que o desejo de se vingar daquelas humilhações. Vinham-lhe idéias insensatas! Se a envenenasse! Parecia-lhe que sentiria um prazer delicioso em a ver torcer-se com vômitos dilacerantes, uivando de agonia, largando a alma!

Galgou as escadas de Leopoldina; a campainha ficou a retinir muito tempo do puxão da sua mão febril.

A Justina apenas a viu foi a gritar pelo corredor:

— É a senhora D. Luísa, minha senhora, é a senhora D. Luísa!

E Leopoldina despenteada, com um roupão escarlate de grande cauda, correu estendendo os braços:

— És tu! Que milagre é este? Eu levantei-me agora! Entra cá para o quarto. Está tudo desarranjado, mas não importa. Mas que é isto, que é isto?

Abriu as janelas que estavam ainda cerradas. Havia um forte cheiro de vinagre de toalete; a Justina tirava à pressa uma bacia de latão, com água ensaboada; toalhas sujas arrastavam; sobre uma jardineira tinham ficado da véspera os rolos de cabelos, o colete, uma chávena com um fundo de chá cheio de pontas de cigarros. E Leopoldina corria o transparente, dizendo:

— Ora graças a Deus que honras esta casa, minha fidalga!...

Mas vendo o rosto perturbado de Luísa, os seus olhos vermelhos de lágrimas:

— Que é? Que tens tu? Que sucedeu?

— Um horror, Leopoldina! - exclamou, apertando as mãos. A outra foi fechar a porta, rapidamente.

— Então?

Mas Luísa chorava sem responder. Leopoldina olhava-a petrificada.

— A Juliana apanhou-me umas cartas! - disse enfim por entre soluços. - Quer seiscentos mil réis! Estou perdida... Tem-me martirizado... Quero que me digas, vê se te lembras... Estou como doida. Sou eu que faço tudo em casa... Morro, não posso! - E as lágrimas redobravam.

— E as tuas jóias?

— Valem duzentos mil réis. E Jorge, que lhe havia eu de dizer?

Leopoldina ficou um momento calada, e olhando em roda de si, abrindo os braços:

— Tudo o que eu tenho, no prego, minha filha, dá vinte libras!...

Luísa murmurava, limpando os olhos:

— Que expiação esta, Santo Deus, que expiação!

— Que diz a carta?

— Horrores! Estava doida... É uma minha, duas dele.

— De teu primo?

Luísa disse "sim", com a cabeça, lentamente.- E ele?

— Não sei! Está em França, nunca me respondeu.

— Pulha! Como tas apanhou, a mulher?

Luísa contou rapidamente a história do sarcófago, e do cofre.

— Mas tu também, Luísa, atirar uma carta dessas! Oh, mulher, isso é medonho!

E Leopoldina pôs-se a passear pelo quarto, arrastando a longa cauda do roupão escarlate; os seus grandes olhos negros, excitados, pareciam procurar um meio, um expediente... Murmurava:

— A questão é de dinheiro...

Luísa, prostrada no sofá, repetia:

— A questão é de dinheiro!

Então Leopoldina, parando bruscamente diante dela:

— Eu sei quem te dava o dinheiro!...

— Quem?

— Um homem.

Luísa ergueu-se, espantada:

— Quem?

— O Castro.

— O de óculos?

— O de óculos.

Luísa fez-se muito corada:

— Oh, Leopoldina! - murmurou. E depois de um silêncio, rapidamente.

— Quem to disse?

— Sei-o eu. Disse-o ele ao Mendonça. Sabes que eram unha e carne. Que te dava tudo o que tu lhe pedisses! Disse-lho mais de uma vez.

— Que horror! - exclamou Luísa subitamente indignada. - E tu propões me semelhante coisa? - O seu olhar, sob as sobrancelhas franzidas, dardejava de cólera. Ir com um homem por dinheiro! - Tirou o chapéu, violentamente, com as mãos trêmulas; arremessou-o para a jardineira, e com passos rápidos pelo quarto: - Antes fugir, ir para um convento, ser criada, apanhar a lama das ruas!

— Não te exaltes, criatura! Quem te diz isso? Talvez o homem te emprestasse' o dinheiro, desinteressadamente...

— Acreditas tu?

Leopoldina não respondeu: com a cabeça baixa, fazia girar os anéis nos dedos.

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