Authors: Eça de Queirós
Julião apalpou-a, ergueu-se sacudindo as mãos, disse:
— Está morta com todas as regras. E necessário tirá-la daqui. Onde é o quarto?
Sebastião, pálido, fez sinal com o dedo que era por cima.
— Bem. Arrasta-a tu, que eu levo o candeeiro. - E como Sebastião não se movia: - Tens medo? - perguntou rindo.
Escarneceu-o: que diabo, era matéria inerte, era como quem agarrava uma boneca! Sebastião, com um suor à raiz dos cabelos, levantou o cadáver por debaixo dos braços, começou a arrastá-lo, devagar. Julião adiante erguia o candeeiro; e por fanfarronada cantou os primeiros compassos da marcha do Foosto. Mas Sebastião escandalizou-se, e com uma voz que tremia:
— Largo tudo, e vou-me...
— Respeitarei os nervos da menina! - disse Julião curvando-se.
Continuaram calados. Aquele corpo magro parecia a Sebastião de um peso de chumbo. Arquejava. Nas escadas uma das chinelas do cadáver soltou-se, rolou. E Sebastião sentia aterrado alguma coisa que lhe batia contra os joelhos; era a cuia caída, suspensa por um atilho.
Estenderam-na na cama; Julião, dizendo que se deviam seguir as tradições- pôs-lhe os braços em cruz e fechou-lhe os olhos.
Esteve um momento a olhá-la:
— Feia besta! - murmurou, estendendo-lhe sobre o rosto uma toalha enxovalhada.
Ao sair examinou, admirado, o quarto:
— Estava mais bem alojada que eu, o estafermo!
Fechou a porta, deu a volta à chave:
— Requiescat in pace - disse.
E desceram, calados.
Ao entrar na sala, Sebastião, muito pálido, pôs a mão no ombro de Julião:
— Então achas que foi o aneurisma?
— Foi. Enfureceu-se, estourou. É dos livros...
— Se não se tivesse zangado hoje...
— Estourava amanhã. Estava nas últimas... Deixa em paz a criatura. Está começando a esta hora a apodrecer, não a perturbemos.
Declarou então, esfregando as mãos com frio, que comia alguma coisa. Achou no armário um pedaço de vitela fria, uma garrafa meia de Colares. Instalou-se e, com a boca cheia, deitando o vinho do alto:
— Então sabes a novidade, Sebastião?
— Não.
— O meu concorrente foi despachado!
Sebastião murmurou:
— Que ferro!
— Era previsto - disse Julião com um grande gesto. - Eu ia fazer um escândalo, mas... - e teve um risinho - amansaram-me! Estou num posto médico, deram-me um posto médico! Atiraram-me um osso!
— Sim? - fez Sebastião. - Homem, ainda bem, parabéns. E agora?
— Agora, roê-lo.
De resto, tinham-lhe prometido a primeira vagatura. O posto médico não mau... Em definitivo, a situação melhorara...
— Mas mesquinha, mesquinha! Não saio do atoleiro...
Estava farto de Medicina, disse depois de um silêncio. Era um beco sem saída. Devia-se ter feito advogado, político, intrigante. Tinha nascido para isso!
Ergueu-se, e com grandes passadas pela sala, o cigarro na mão, a voz cortante, expôs um plano de ambição: - O país está a preceito para um intrigante com vontade! Esta gente toda está velha, cheia de doenças, de catarros de bexiga, de antigas sífilis! Tudo isto está podre por dentro e por fora! O velho mundo constitucional vai a cair aos pedaços... Necessitam-se homens!
E plantando-se diante de Sebastião:
— Este pais, meu caro amigo, tem-se governado até aqui com expedientes. Quando vier a revolução contra os expedientes, o país há de procurar quem tenha os princípios. Mas quem tem aí princípios? Quem tem aí quatro princípios? Ninguém; têm dívidas, vícios secretos, dentes postiços; mas princípios, nem meio! Por conseqüência se houver três patuscos que se dêem ao trabalho de estabelecer meia dúzia de princípios sérios, racionais, modernos, positivos, o país tem de se atirar de joelhos e suplicar-lhes: "Senhores, fazei-me a honra insigne de me pôr o freio nos dentes!" Ora, eu devia ser um destes. Nasci para isso! E seca-me a idéia de que enquanto outros idiotas, mais astutos e mais previdentes, hão de estar no poleiro a reluzir ao sol, al hermoso sol portugués, como se diz nas zarzuelas, eu hei de estar a receitar cataplasmas a velhas devotas, ou a ligar as rupturas de algum desembargador caduco.
Sebastião calado pensava na outra, morta em cima.
— Estúpido país, estúpida vida! - rosnou Julião.
Mas uma carruagem entrou na rua, parou à porta.
— Chegam os príncipes! - disse Julião. Desceram logo.
Jorge ajudava a Luísa a sair do trem, quando Sebastião, abrindo a porta bruscamente:
— Houve cá grande novidade!
— Fogo? - gritou Jorge voltando-se aterrado.
— A Juliana, que lhe rebentou o aneurisma - disse a voz de Julião da sombra da porta.
— Oh, com os diabos! - E Jorge atarantado procurava à pressa na algibeira troco para o cocheiro.
— Ai, eu já não entro! - exclamou logo D. Felicidade, mostrando à portinhola a sua larga face envolvida numa manta branca. - Eu já não entro!
— Nem eu! - fez Luísa toda trêmula.
— Mas para onde queres que vamos, filha? - exclamou Jorge.
Sebastião lembrou que podiam ir para casa dele. Tinha o quarto da mamã, era só pôr lençóis na cama.
— Vamos, sim! Vamos, Jorge! É o melhor! - suplicou Luísa.
Jorge hesitava. A patrulha que ia passando ao alto da rua, ao ver aquele grupo junto à lanterna do trem, parou. E Jorge enfim, instado, muito contrariado, consentiu.
— Diabo de mulher, morrer a semelhante hora! A carruagem vai-a levar, D. Felicidade...
— E a mim, que estou em chinelas! - acudiu Julião.
D. Felicidade lembrou então, como cristã, que era necessário alguém, para velar a morta...
— Ora, pelo amor de Deus, D. Felicidade! - exclamou Julião entrando logo para a carruagem, batendo com a portinhola.
Mas D. Felicidade insistia: era uma falta de religião! Ao menos pôr duas velas, mandar chamar um padre!...
— Largue, cocheiro! - berrou Julião impaciente.
A carruagem deu a volta. E D. Felicidade à portinhola, apesar de Julião que a puxava pelos vestidos, gritava:
— É um pecado mortal! É uma irreverência! Ao menos duas velas!
O trem partiu a trote:
Luísa agora tinha escrúpulos: realmente podia-se mandar chamar alguém...
Mas Jorge enfureceu-se. Chamar quem, àquela hora? Que beatice! Estava morta, acabou-se! Enterrava-se... Velar o estafermo! Fazer-lhe talvez câmara ardente. Queria ela ir velá-la?...
— Então, Jorge, então!... - murmurava Sebastião.
— Não, é demais! É vontade de criar embaraços, que diabo!
Luísa baixava a cabeça; e, enquanto Jorge, praguejando, ficou atrás a fechar a porta da casa, ela foi descendo a rua pelo braço de Sebastião.
— Estourou de raiva - disse-lhe ele baixinho.
Toda a rua Jorge resmungou. Que idéia, irem dormir agora fora de casa! Realmente era levar muito longe as mariquices!...
Até que Luísa lhe disse, quase chorando:
— Vê se me queres torturar mais e fazer-me mais doente, Jorge!
Ele calou-se, mordendo furioso o charuto. E Sebastião, para a sossegar, propôs que viesse a tia Vicência, a preta, velar a Juliana.
— Era talvez melhor - murmurou Luísa.
Chegaram à porta de Sebastião. O frufru do vestido de seda de Luísa, àquela hora, na sua casa, dava uma comoção a Sebastião: a mão tremia-lhe ao acender as velas da sala. Foi acordar a tia Vicência para fazer chá; tirou ele mesmo os lençóis dos baús, apressado, feliz daquela hospitalidade. Quando voltou à sala, Luísa estava só, muito pálida, ao canto do sofá.
— Jorge? - perguntou ele.
— Foi ao seu escritório, Sebastião, escrever ao pároco para o enterro... E com os olhos brilhantes, numa voz sumida e assustada: - Então?
Sebastião tirou da algibeira a carteirinha de Juliana. Ela agarrou-a sofregamente - e com um movimento brusco tomou-lhe a mão e beijou-lha.
Mas Jorge entrava, sorrindo.
— Então agora está mais descansada, a menina?
— Inteiramente - disse ela com um suspiro de alívio.
Foram tomar chá. Sebastião contou a Jorge, corando um pouco, a maneira como entrara em casa, a Juliana lhe estivera a dizer que fora despedida, e falando, exaltando-se, zás, de repente, caíra para o lado morta...
E acrescentou:
— Coitada!
Luísa via-o mentir, olhando-o com adoração.
— E a Joana? - perguntou Jorge de repente. Luísa, sem se perturbar, respondeu:
— Ah, esqueci-me dizer-te... Tinha pedido licença para ir ver uma tia que está muito mal, para os lados de Belas... Diz que volta amanhã... Mais uma gota de, chá, Sebastião...
Esqueceram-se depois de mandar a Vicência - e ninguém velou a morta.
Luísa passou a noite às voltas, com febre. Jorge de madrugada ficou assustado da freqüência do seu pulso e do calor seco da pele.
Ele mesmo muito nervoso, não pudera dormir.
O quarto, onde se não acendera luz havia muito, tinha uma frialdade desabitada na parede, junto ao teto, havia manchas de umidade; e a cama antiga de colunas torneadas sem cortinados, o velho trenó do século passado com o seu espelho embaciado davam, à luz bruxuleante da lamparina, um sentimento triste de convivências extintas. O achar-se ali com a sua mulher, numa cama alheia, trazia-lhe, sem saber por quê, uma vaga saudade; parecia-lhe que se dera na sua vida uma alteração brusca - e que, semelhante a um rio a que se muda o leito, a sua existência, desde essa noite, começaria a correr entre aspectos diferentes. O nordeste fazia bater os caixilhos da vidraça, e uivava encanado na rua.
Pela manhã, Luísa não se pôde levantar.
Julião, chamado à pressa, tranqüilizou-os:
— É uma febrezita nervosa. Quer sossego, não vale nada. Foi o medozinho de ontem, hem?
— Sonhei toda a noite com ela - disse Luísa. - Que tinha ressuscitado... Que horror!
— Ah! Pode estar sossegada... E já a aviaram, a mulher?
— O Sebastião lá anda com a maçada - disse Jorge. - E eu vou dar uma vista de olhos.
Na rua já se sabia a morte da Tripa Velha.
A mulher que a veio amortalhar, uma matrona muito picada das bexigas com os olhos avermelhados da paixão da aguardente, era conhecida da Sra. Helena. Estiveram um momento a palrar ao sol, à porta do estanque:
— Muito que fazer agora, Sra. Margarida, hem?
— Bastante, bastante, Sra. Helena - disse a amortalhadeira com a voz um pouco rouca. - No inverno sempre há mais obra. Mas tudo gente velha, com os frios. Nem um corpinho bonito para vestir...
A Sra. Margarida tinha predileções artísticas. Gostava de um bonito corpo de dezoito anos, uma mocinha fresca para lavar, escarolar, enfeitar... Entrouxava à má cara a gente velha. Mas com as raparigas novas esmerava-se: acatitava as pregas da mortalha; calculava o chique de uma flor, de um laço; trabalhava com os requintes ajanotados de uma modista do sepulcro.
A estanqueira contou-lhe muitas particularidades sobre a Juliana, os favores dos patrões, as tafularias dela, os luxos do quarto tapetado... A Sra. Margarida dizia-se "banzada". E para quem agora iria tudo aquilo? - perguntavam. - A Tripa Velha não tinha parentes...
— Era uma riqueza para a minha Antoninha! - disse a amortalhadeira traçando o xale com tristeza.
— Como vai ela, a pequena?...
— Aquilo vai mal, Sra. Helena. Aquela cabeça doida! - E exalando a sua dor com loquacidade: - Deixar o brasileiro que a trazia nas palminhas... E por quem? Por aquele desalmado, que lhe come tudo, que já lhe arranjou um filho e que a derreia com pau... Mas então, as raparigas são assim... Vão atrás do palmo de cara... Que ele é bonito rapaz! Mas um bêbedo!... Coitada!... Pois vou vestir a boneca, Sra. Helena. - E entrou na casa compungidamente.
O padre já chegara também. Estava na sala com Sebastião, que conhecia de Almada, e falava de lavoura, de enxertos, das regas, numa voz grossa - passando, com um gesto lento da sua mão cabeluda, o lenço enrolado por debaixo do nariz. As janelas em toda a casa estavam abertas ao sol muito doce. Os canários chilreavam.
— E estava há muito tempo na casa, a defunta? - perguntou o padre a Jorge, que passeava pela sala, fumando.
— Há quase um ano.
O padre desdobrou lentamente o lenço, e sacudindo-o, antes de se assoar:
— A sua senhora há de sentir muito... É um tributo universal!...
E assoou-se com estrondo.
A Joana, então, de xale e lenço, apareceu, em bicos de pés. Soubera pelos vizinhos que a Juliana "arrebentara", que os senhores estavam em casa do Sr. Sebastião. Vinha de lá. Luísa mandara-a entrar no quarto. Quando a viu doente, a sua rica senhora, lacrimejou muito. Luísa disse-lhe - que agora estava tudo como dantes, podia voltar...
— E ouça. Joana, se o Sr. Jorge lhe perguntar... que esteve em Belas com à tia...
A rapariga fora logo buscar a trouxa e vinha instalar-se - um pouco assustada da morte em casa.
Daí a pouco o Paula bateu discretamente à porta.
Ali vinha oferecer-se para o que fosse necessário naquele transe! E tirando e pondo rapidamente o boné, raspando o pé, dizia com a sua voz catarrosa:
— Lamento a desgraça, lamento a desgraça! Todos somos mortais...
— Bem, bem, Sr. Paula, não é necessário nada - disse Jorge. - Obrigado!
E fechou bruscamente a cancela.
Estava impaciente por se desembaraçar "daquela estopada"; e mesmo como o enfastiavam as marteladas espaçadas dos homens pregando o caixão, em cima, chamou a Joana:
— Diga a essa gente que se avie. Não vamos ficar aqui toda a vida!
A Joana foi logo dizer que o senhor estava um frenesi! Tinha-se feito já íntima da Sra. Margarida. A amortalhadeira fora mesmo com ela à cozinha para tomar uma "sustanciazinha". Como o lume estava apagado, contentou-se com sopas de pão em vinho.
— Sopinha de burro - dizia, fazendo estalar a língua.
Mas estava enojada com a defunta! Nunca vira bicho mais feio. Um corpo de sardinha seca! E pondo um olhar complacente nas belas formas de Joana: - A menina, não. A menina tem-me o ar de ter muito bom corpo... - E parecia calcular como talharia a mortalha para aquelas linhas robustas.
Joana disse escandalizada:
— Longe vá o agouro, cruzes!
A outra sorriu; faltavam-lhe dois dentes; e aflautando a voz:
— Tem-me passado pela mão muita gente fina, minha menina. Mais uma gotinha de vinho, faz favor? É do Cartaxo, não? É muito aveludado! Rica gota!