O Primo Basílio (42 page)

Read O Primo Basílio Online

Authors: Eça de Queirós

BOOK: O Primo Basílio
2.59Mb size Format: txt, pdf, ePub

Luísa vendo-o às vezes seguir Juliana com um olhar rancoroso, tremia! Mas o que a torturava era a maneira que Jorge adotara de falar dela com uma veneração irônica; chamava-lhe "a ilustre D. Juliana, a minha ama e senhora!" Se faltava um guardanapo ou um copo, fingia-se espantado: "Como! a D. Juliana esqueceu-se! Uma pessoa tão perfeita!" Tinha gracejos que gelavam Luísa.

— A que sabia o filtro que ela te deu? Era bom?

Luísa agora, diante dele, já nem se atrevia a falar a Juliana com um modo natural; temia os sorrisos malignos, os apartes: "Anda, atira-lhe um beijo, conhece-se na cara que estás com vontade de lho atirar!" E, receando as suspeitas dele, querendo mostrar-se independente, começou na sua presença, a falar a Juliana com uma dureza brusca, muito afetada. A pedir-lhe água, uma faca, dava à voz inflexões de um rancor postiço.

Juliana, muito fina, tinha percebido tudo, e suportava calada. Queria evitar toda a questão que a perturbasse no seu conchego. Sentia-se agora muito mal, e nas noites em que não podia dormir com aflições asmáticas, punha-se a pensar com terror - se fosse expulsa daquela casa, para onde iria? Para o hospital!

Tinha por isso medo de Jorge.

— Ele está morto por me pilhar em desleixo grosso, e descartar-se de mim - dizia ela à tia Vitória -, mas não lhe hei de dar esse gosto, ao boi manso!

E Luísa, pasmada, vira-a pouco a pouco recomeçar a fazer todo o serviço, com zelo, aparentemente; e todavia às vezes não podia, vencida pela doença; tinha flatos que a faziam cair numa cadeira, arquejando, com as mãos no coração. Mas reagia. Uma ocasião mesmo vendo Luísa a passar um espanejador pelas consolas da sala, zangou-se:

— A senhora faz favor de se não meter no meu serviço? Eu ainda posso! Ainda não estou na cova!

Consolava-se então com regalos de gulodice. Durante todo o dia debicava sopinhas, croquetes, pudinzinhos de batata. Tinha no quarto gelatina e vinho do Porto. Em certos dias mesmo queria caldos de galinha à noite.

— Com o meu corpo o pago - dizia ela a Joana -, que trabalho como uma negra! Arraso-me!

Um dia, porém, que Jorge se irritara mais com a figura amarelada de Juliana, e que estava nervoso, ao achar à noite o jarro vazio e o lavatório sem toalha, enfureceu-se desproporcionadamente.

— Não estou para aturar estes desleixos! Irra! - gritou.

Luísa veio logo, inquieta, desculpar Juliana.

Jorge mordeu o beiço, curvou-se profundamente e com a voz um pouco trêmula:

— Perdão! Esquecia-me que a pessoa de Juliana é sagrada! Eu mesmo vou buscar água!

Luísa então zangou-se: se havia de estar sempre com aqueles remoques, era mandar a criada embora por uma vez! Imaginava talvez que ela amava de paixão Juliana? Se a conservava é porque era uma boa criada. Mas se ela se tornava a causa de maus humores, de questões, se ele lhe ganhara tamanho ódio, bem, então que se fosse! Era uma seca aquela ironia constante... Jorge não respondeu.

E durante a noite Luísa, sem dormir, pensava que aquilo não podia durar! Estava farta! Aturar a mulher, a sua tirania, e ouvir a todo o momento ditinhos, alusões, ah, não! Era demais! Bastava! Ele começava a desconfiar, a bomba ia estalar! Pois bem, ela mesma chegaria o lume ao rastilho! Ia mandar a Juliana embora! E que mostrasse as cartas, acabou-se! Se ele a metesse num convento, se separasse dela, bem! Sofreria, morreria! Tudo, menos aquele martírio reles, às picadinhas, medonho e grotesco!

— Que tens tu? - perguntou Jorge meio a dormir, sentindo-a inquieta.

— Espertina.

— Coitada! Conta cento e cinqüenta para trás! - E voltou-se, enrolando-se comodamente na roupa.

Ao outro dia Jorge levantara-se cedo. Devia encontrar-se com o Alonso, o espanhol das minas, e jantar com ele no Gibraltar. Depois de vestido foi à sala de jantar - eram dez horas - e voltou dizer a Luísa, com uma cortesia profunda, espaçando as palavras: - que não estava a mesa posta! Que as chávenas do chá « da véspera estavam ainda por lavar! E que a senhora D. Juliana, a ilustre senhora D. Juliana tinha saído, a seu passeio!

Eu disse-lhe ontem à noite que me fosse-me ao sapateiro... - começou Luísa, que vestia o seu roupão.

— Ah, perdão! - interrompeu Jorge muito cerimoniosamente.

— Esqueci-me outra vez que se trata de Juliana, tua ama e senhora! Perdão!

Luísa acudiu logo:

— Não. Tens razão. Tu verás! É preciso pôr um cobro...

Subiu logo à cozinha, desesperada:

— Você por que não pôs a mesa, Joana, se a outra saiu?

Mas a rapariga não ouvira sair a Sra. Juliana! Imaginara que estava para baixo, para sala! Como ela agora é que queria fazer tudo!...

Quando Joana trouxe o almoço daí a pouco Jorge veio sentar-se à mesa, torcendo muito nervosamente o bigode. Levantou-se duas vezes com um sorriso mudo para ir buscar uma colher, o açucareiro. Luísa via-lhe os músculos da face contraídos: mal podia comer, atarantada; a chávena, quando a erguia, tremia-lhe mão; com os olhos baixos espreitava Jorge às furtadelas, e o seu silêncio torturava-a.

— Tu falaste ontem que ias jantar fora hoje...

— Vou - disse secamente. E acrescentou: - Graças a Deus!

— Estás de bom humor!... - murmurou ela.

— Como vês!

Luísa fez-se pálida, pousou o talher; tomou o jornal para disfarçar uma lagrimazinha que lhe tremia na pálpebra; mas as letras confundiam-se, sentia pular o coração. De repente a campainha tocou. Era a outra, decerto!

Jorge, que se ia erguer, disse logo:

— Há de ser essa senhora. Ora, vou-lhe dizer duas palavras...

E ficou de pé, junto à mesa, aguçando devagar um palito.

Luísa, a tremer, levantou-se também:

— Eu vou-lhe falar...

Jorge reteve-a pelo braço, e tranqüilamente:

— Não, deixa-a vir. Deixa-me gozar!...

Luísa recaiu na cadeira, muito pálida.

Os tacões de Juliana soaram no corredor. Jorge aguçava tranqüilamente o seu palito.

Luísa então voltou-se para ele, e batendo as mãos, aflita:

— Não lhe digas nada!...

Ele fixou-a, assombrado:

— Por quê?

Juliana neste momento abriu o reposteiro.

— Então que desaforo é este, sair e deixar tudo por arrumar? - disse-lhe Luísa logo, erguendo-se.

Juliana, que vinha sorrindo, estacou à porta, petrificada: apesar de sua amarelidão, uma vaga cor de sangue espalhou-se nas feições.

— Não lhe torne acontecer semelhante coisa, ouviu? A sua obrigação é estar em casa pela manhã... - Mas o olhar de Juliana, que se cravava nela terrivelmente, emudeceu-a. Agarrou no bule com as mãos trêmulas. - Deite água neste bule, vá!

Juliana não se mexeu.

— Você não ouviu? - berrou de repente Jorge. E atirou uma punhada à mesa, que fez saltar a louça.

— Jorge! - gritou Luísa, agarrando-lhe no braço.

Mas Juliana fugira da sala, correndo.

— E logo na rua! - exclamou Jorge. - Faze-lhe as contas e que se vá. Ah! Estou farto! Nem mais um dia! Se a tomo a ver, desfaço-a! Até que enfim! Chegou-me a minha vez!

Foi buscar o paletó, muito excitado, e antes de sair, voltando à sala:

— E que se vá hoje mesmo, ouviste? Nem uma hora a mais! Há quinze dias que a trago aqui atravessada. Para a rua!

Luísa veio para o quarto quase sem se poder suster. Estava perdida! Estava perdida! Uma multidão de idéias, todas extremas e insensatas, redemoinhava no seu cérebro como um montão de folhas secas numa ventania: queria fugir, atirar-se ao rio, de noite; arrependia-se de não ter cedido ao Castro... De repente imaginou Jorge abrindo as cartas que Juliana lhe entregava, lendo: "Meu adorado Basílio!" Então uma cobardia imensa, amoleceu-lhe a alma. Correu ao quarto de Juliana, ia suplicar-lhe que lhe perdoasse, que ficasse, que a martirizasse!... E depois? Diria que a Juliana chorara, se atirara de joelhos! Mentiria, cobri-lo-ia de beijos... Era nova, era bonita, era ardente - convencê-lo-ia!

Juliana não estava no quarto. Subiu à cozinha; estava lá, sentada, com os olhos chamejantes, os braços nervosamente cruzados, numa raiva muda. Apenas viu Luísa, deu um salto sobre os calhares, e mostrando-lhe o punho, berrou:

— Olhe que a primeira vez que você me torne a falar como hoje, vai aqui tudo raso nesta casa!

— Cale-se, sua infame! - gritou Luísa.

— Você manda-me calar, sua p...! - E Juliana disse a palavra.

Mas a Joana correu, atirou-lhe pelo queixo uma bofetada que a fez cair, com um gemido, sobre os joelhos.

— Mulher! - bradou Luísa arremessando-se sobre a Joana, agarrando-a pelos braços.

Juliana, assombrada, fugiu.

— Ó Joana! Ó mulher! Que desgraça, que escândalo! - exclamava Luísa as mãos apertadas na cabeça.

— Racho-a! - dizia a rapariga com os dentes cerrados, os olhos como brasas - Racho-a!

Luísa andava em volta da mesa da cozinha, automaticamente, pálida como repetindo, toda a tremer:

— O que você foi fazer, mulher! O que você foi fazer!

A Joana, ainda toda revolvida de sua cólera, com o rosto manchado de vermelho, remexia furiosamente as panelas.

— E se ela me diz uma palavra, acabo-a, aquela bêbeda! Acabo-a!

Luísa desceu ao quarto. No corredor saiu-lhe Juliana, com a cuia à banda, as dedadas escarlates na face, medonha.

— Ou aquela desavergonhada vai já para a rua - gritou ela - ou eu vou-me pôr lá embaixo na escada, e quando o seu homem vier, mostro-lhe tudo!...

— Pois mostre, faça o que quiser! - disse Luísa, passando, sem a olhar.

Fora uma desesperação, um ódio que a tinham decidido. Mais valia acabar por uma vez!...

Sentia então como um alívio doloroso, em ver o fim do seu longo martírio! Havia meses que ele durava. E pensando em tudo o que tinha feito e que tinha sofrido, as infâmias em que chafurdara e as humilhações a que descera, vinha-lhe um tédio de si mesma, um nojo imenso da vida. Parecia-lhe que a tinham sujado e espezinhado; que nela nem havia orgulho intacto, nem sentimento limpo; que tudo em si, no seu corpo e na sua alma, estava enxovalhado, como um trapo que foi pisado por uma multidão, sobre a lama. Não valia a pena lutar por uma vida tão vil. O convento seria já uma purificação, a morte uma purificação maior... - E onde estava ele, o homem que a desgraçara? Em Paris, retorcendo a guia dos bigodes, chalaceando, governando os seus cavalos, dormindo com outras! E ela morreria ali, estupidamente! E quando lhe escrevera a pedir-lhe que a salvasse, nem uma palavra de resposta; nem a julgara digna do meio tostão da estampilha! O que ele lhe dizia pelas terras da Pólvora acima, naquela cupê: - Dar-lhe-ia toda a sua vida, viveria à sombra das suas saias! O infame! Já tinha talvez no bolso o bilhete da passagem! Enquanto ela fora a mulher alegre, que vem, despe o corpete, mostra um lindo colo - então bem, pronto! Mas teve uma dificuldade, chorou, sofreu - ah! não, isso não! "És um belo animal que me dás um grande prazer - perfeitamente, tudo o que quiseres; mas tornas-te uma criatura dolorida que precisa consolações, talvez uns poucos de centos de mil réis - então boas noites, cá vou no paquete!" Oh, que estúpida que é a vida! Ainda bem que a deixava!

Foi-se encostar à janela. Estava um dia muito azul, muito doce. O sol punha grandes claridades de um dourado ligeiro sobre as paredes brancas, sobre a calçada. E havia no ar uma suavidade aveludada. O Paula, em chinelas de tapete, aquecia-se à porta do estanque. Então, diante do lindo ar de inverno, enterneceu-se. Todos eram felizes naquela manhã de rosas, só ela sofria, pobre dela! E ficou a olhar, como esquecida numa vaga saudade, com uma lágrima na pálpebra... De repente viu Juliana atravessar a rua, dobrar a esquina - e daí a pouco voltar com um galego, velho e pesado, que trazia o seu saco ao ombro.

Ia-se embora! - pensou Luísa. - Mandava por fora os baús! E depois? Remetia as cartas a Jorge, ou entregava-lhas ela mesma, no portal! Santo Deus! - E parecia-lhe ver Jorge aparecer no quarto, lívido, com as cartas na mão!...

Veio-lhe um terror alucinado: não queria perder o seu marido, o seu Jorge, o seu amor, a sua casa, o seu homem! Apossou-se dela a revolta da fêmea contra a viuvez; aos vinte e cinco anos ir murchar para um convento! Não, com os diabos!

Foi direita ao quarto de Juliana.

— Vem ver se lhe levo alguma coisa? - gritou logo a outra, furiosa.

Sobre a cama estava roupa branca espalhada, pelo chão botinas embrulhadas em jornais velhos.

— E ainda cá me ficam quatro camisas, dois pares de calcinhas, três pares de meias, seis punhos na lavadeira. Fica aí o rol. E quero as minhas contas!...

— Escute, Juliana, não se vá. - Mas a voz desapareceu-lhe, as lágrimas saltaram-lhe dos olhos.

Juliana pôs-se a olhar para ela do alto, triunfando, com uma botina de duraque em cada mão.

— É mandar aquela desavergonhada embora, e está tudo acabado! - E com uma voz aguda, batendo as solas das botinas: - Fica tudo como dantes, na paz do Senhor!

Uma alegria extraordinária acendia-lhe o olhar. Vingava-se!

Fazia-a chorar! Expulsava a outra! E não perdia os seus cômodos!

— É pôr a bêbeda na rua! É pô-la na rua!

Luísa curvou os ombros, foi à cozinha devagar; os degraus da escada pareciam-lhe imensos, infindáveis. Deixou-se cair num banco, e limpando os olhos:

— Joana, venha cá, escute, você não pode continuar na casa...

A rapariga ficou a olhar para ela, espantada.

— O que a Juliana disse foi num repente... Tem estado a chorar, a arrepender-se. É a criada mais antiga. O senhor estima-a muito...

— Então a senhora manda-me embora? Então a senhora manda-me embora?

Luísa insistiu, baixo, envergonhada:

— Foi um repente, tem estado a pedir perdão...

— Eu foi para defender a senhora! - exclamou a rapariga abrindo os braços aflita.

Luísa sentiu-se indignada; e impaciente, para acabar:

— Bem, Joana, não estejamos com mais. Eu é que sou a dona da casa...

— Vou-lhe fazer as contas.

— Olha que pago este! - gritou Joana, então, desesperada. E com uma solução, batendo o pé: - Pois o senhor é que há de dizer! Eu vou dizer tudo ao senhor! Hei de lhe contar tudo o que se passou! A senhora não tem razão!...

Luísa olhava-a, estúpida. Agora era aquela! Era daquela rapariga, teimosa na sua justiça, que vinha o desastre! Era demais! Veio-lhe um terror, sobrenatural, como um espanto da consciência, e apertando as fontes nas mãos abertas:

Other books

La dama del alba by Alejandro Casona
No Man's Land by G. M. Ford
Svein, el del caballo blanco by Bernard Cornwell
Annie Oakley's Girl by Rebecca Brown
The Outlaw's Obsession by Jenika Snow