Authors: Eça de Queirós
— Eu não sei! - disse Luísa muito risonha. - É uma honra para a família!...
Jorge concordou. Passeava pela sala fumando; e disse que gozava tanto a coroa, como se tivesse direito a usá-la...
E Ernestinho voltando-se logo para ele:
— Sabes que lhe perdoei, primo Jorge? Perdoei à esposa...
— Como Cristo...
— Como Cristo - confirmou o Ernestinho, com satisfação.
D. Felicidade aprovou logo:
— Fez muito bem! Até é mais moral!
— O Jorge é que queria que eu desse cabo dela - disse Ernestinho, rindo tolamente. - Não se lembra, naquela noite...
— Sim, sim - fez Jorge, rindo também, nervosamente.
— O nosso Jorge - disse com solenidade o Conselheiro - não podia conservar idéias tão extremas. E decerto a reflexão, a experiência da vida...
— Mudei, Conselheiro, mudei - interrompeu Jorge.
E entrou bruscamente no escritório.
Sebastião, inquieto, foi devagar ter com ele. Estava às escuras.
— Aqueles idiotas não se calarão? Não se irão? - disse ele abafadamente, agarrando o braço de Sebastião.
— Sossega!
— Oh, Sebastião! Sebastião! - E a sua voz tremia, com lágrimas.
Mas Luísa, da sala, gritou:
— Que conspiração é essa aí dentro às escuras?
Sebastião apareceu logo, dizendo:
— Nada, nada. Estávamos lá dentro... - E acrescentou baixo: - O Jorge está fatigado. Está adoentado, coitado!
Notaram, quando ele voltou - que tinha com efeito o ar esquisito.
— Não, realmente não me sinto bom, estou incomodado!
— E a débil D. Luísa precisa o repouso do seu leito - disse o Conselheiro erguendo-se.
Ernestinho que não se podia demorar, ofereceu logo ao Conselheiro e a Julião - a sua carruagem, que era uma caleche, se iam para a Baixa...
— Que honra - exclamou Julião olhando Acácio - irmos na tipóia do grande homem!
E enquanto D. Felicidade se agasalhava, os três desceram.
No meio da escada Julião parou, e cruzando os braços:
— Ora aqui vou eu entre os representantes dos dois grandes movimentos de Portugal desde 1820. A Literatura - e cumprimentou Ernestinho - e o Constitucionalismo! - e curvou-se para o Conselheiro.
Os dois riram, lisonjeados.
— E o amigo Zuzarte?
— Eu? - E baixando a voz: - Até há dias um revolucionário terrível. Mas agora...
— O quê?
— Um amigo da Ordem! - gritou com júbilo.
E desceram, contentes de si e do seu país, para se meterem na tipóia do grande homem!
Ao outro dia Jorge foi ao ministério, onde não tinha aparecido nos últimos tempos. Mas demorou-se pouco. A rua, a presença dos desconhecidos ou dos estranhos torturava-o; parecia-lhe que todo o mundo sabia; nos olhares mais naturais via uma intenção maligna, e nos apertos de mão mais sinceros uma irônica pressão de pêsames; as carruagens mesmo que passavam davam-lhe a suspeita de a terem conduzido ao rendez-vous, e todas as casas lhe pareciam a fachada infame do Paraíso. Voltou mais sombrio, infeliz, sentindo a vida estragada. E logo no corredor ao entrar ouviu Luísa cantarolando, como outrora, a Mandolinata!
Estava-se a vestir.
— Como estás tu? - perguntou, pondo a um canto a sua bengala.
— Estou boa. Hoje estou muito melhor. Um bocado fraca ainda...
Jorge deu alguns passos pelo quarto, taciturno.
— E tu? - perguntou-lhe ela.
— Para aqui ando - disse tão desconsoladamente que Luísa pousou o pente, e com os cabelos soltos veio pôr-lhe as mãos nos ombros, muito carinhosa:
— Que tens tu? Tu tens alguma coisa. Estranho-te tanto há dias! Não és o mesmo! Às vezes estás com um cara de réu... Que é? Dize.
E os seus olhos procuravam os dele, que se desviavam perturbados.
Abraçou-o. Insistia, queria que dissesse tudo à "sua mulherzinha".
— Dize. Que tens?
Ele olhou-a muito, e de repente, com uma resolução violenta:
— Pois bem, digo-te. Tu agora estás boa, podes ouvir... Luísa! Vivo num inferno há duas semanas. Não posso mais... Tu estás boa, não é verdade? Pois bem, que quer dizer isto? Dize a verdade!
E estendeu-lhe a carta de Basílio.
— O que é? - fez ela muito branca. E o papel dobrado tremia-lhe na mão.
Abriu-a devagar, viu a letra de Basílio, num relance adivinhou-a. Fixou Jorge um momento de um modo desvairado, estendeu os braços sem poder falar, levou as mãos à cabeça com um gesto ansioso como se se sentisse ferida, e oscilando, com um grito rouco, caiu sobre os joelhos, ficou estirada no tapete.
Jorge gritou. As criadas acudiram. Estenderam-na na cama. Ele quis que Joana corresse a chamar Sebastião; e ficou, como petrificado, junto ao leito, olhando-a, enquanto Mariana toda trêmula desatacava os espartilhos da senhora.
Sebastião veio logo. Felizmente havia éter, fizeram-lho respirar; apenas abriu lentamente os olhos, Jorge precipitou-se sobre ela:
— Luísa, ouve, fala! Não, não tem dúvida. Mas fala. Dize, que tens?
Ao ouvir a voz dele desmaiou outra vez. Movimentos convulsivos sacudiam-lhe o corpo. Sebastião correu a buscar Julião.
Luísa parecia adormecida agora, imóvel, branca como cera, as mãos pousadas sobre a colcha; e duas lágrimas corriam-lhe devagar pelas faces.
Um trem parou, Julião apareceu esbaforido.
— Achou-se mal de repente... Vê, Julião. Está muito mal! - disse Jorge. Fizeram-lhe respirar mais éter; despertou outra vez. Julião falou-lhe, tomando-lhe o pulso.
— Não, não, ninguém! - murmurou ela retirando a mão. Repetiu com impaciência: - Não, vão-se, não quero... - As suas lágrimas redobravam. E como eles saiam da alcova para a não excitar contrariando-a, ouviram-na chamar:
— Jorge!
Ele ajoelhou-se ao pé da cama, e falando-lhe junto do rosto:
— Que tens tu? Não se fala mais em tal. Acabou-se. Não estejas doente. Juro-te, amo-te... Fosse o que fosse, não me importa. Não quero saber, não.
E como ela ia falar, ele pousou-lhe a mão na boca:
— Não, não quero ouvir. Quero que estejas boa, que não sofras! Dize que estas boa! Que tens? Vamos amanhã para o campo, e esquece-se tudo. Foi uma coisa que passou...
Ela disse apenas com a voz sumida:
— Oh! Jorge! Jorge!
— Bem sei... Mas agora vais ser feliz outra vez... Dize, que sentes?
— Aqui - disse ela, e levava as mãos à cabeça. - Dói-me!
Ele ergueu-se para chamar Julião, mas ela reteve-o, atraiu-o; e devorando-o com os olhos onde a febre se acendia, adiantando o rosto, estendia-lhe os lábios. Ele deu-lhe um beijo inteiro, sincero, cheio de perdão.
— Oh, minha pobre cabeça! - gritou ela.
As fontes latejavam-lhe, e uma cor ardente, seca, esbraseava-lhe o rosto.
Como era habituada a enxaquecas, Julião tranqüilizou-os; recomendou um sossego imóvel e sinapismos de mostarda aos pés - até que ele voltasse.
Jorge ficou junto do leito, taciturno, cortado de pressentimentos, de sustos, suspirando às vezes.
Eram então quatro horas; caía uma chuva miudinha, enevoada; a alcova tinha uma luz lúgubre.
— Não há de ser nada... - dizia Sebastião.
Luísa agitava-se no leito, apertando as mãos na cabeça, torturada pela dor crescente, cheia de sede.
Mariana acabava de arrumar em pontas de pés, vagamente assombrada daquela casa, onde só vira desgosto e doença; mas só o pousar sutil dos seus passos fazia sofrer Luísa, como se fossem marteladas sobre o crânio.
Julião não tardou; logo da porta do quarto, o aspecto dela inquietou-o. Acendeu um fósforo, aproximou-lho do rosto; e aquela luz fez-lhe dar um grito como se um ferro frio lhe trespassasse a cabeça.
Os olhos dilatados tinham um reluzir metálico. Conservava-se muito quieta, porque o gesto mais lento lhe dava na nuca dores penetrantes que a dilaceravam. Só de vez em quando sorria para Jorge com uma expressão de aflição serena e muda.
Julião fez logo pôr três travesseiros, para lhe conservar a cabeça alta. Fora caía o crepúsculo úmido. Andavam em bicos de pés, com cuidado; e mesmo tiraram o relógio da parede para afastar o tique-taque monótono. Ela começava agora a murmurar sons cansados, e a voltar-se com movimentos bruscos que lhe arrancavam gritos; ou imóvel gemia de um modo contínuo e angustioso. Tinham-lhe envolvido as pernas num longo sinapismo; mas não o sentia. Pelas nove horas começou a delirar; a língua tornara-se-lhe branca e dura, como de gesso sujo.
Julião fez logo aplicar na cabeça compressas de água fria. Mas o delírio exacerbava-se.
Ora tinha um murmúrio espesso, um vago rosnar modorrento - onde os nomes de Leopoldina, de Jorge, de Basílio voltavam incessantemente; depois debatia-se, esgarçava a camisa com as mãos; e, arqueando-se, os seus olhos rolavam, como largos bugalhos prateados onde a pupila se sumia.
Sossegava mais; dava risadinhas de uma doçura idiota; tinha gestos lentos sobre o lençol, que aconchegavam e acariciavam, como num gozo tépido; depois começava a respirar ansiosamente, vinham-lhe expressões torturadas de terror, queria enterrar-se nos travesseiros e nos colchões, fugindo a aspectos pavorosos; punha-se então a apertar a cabeça freneticamente, pedia que lha abrissem, que a tinha cheia de pedras, que tivessem piedade dela! - e fios de lágrimas corriam-lhe pelo rosto. - Não sentia os sinapismos; expunham-lhe agora os pés nus ao vapor de água a ferver, carregada de mostarda; um cheiro acre adstringia o ar do quarto. Jorge falava-lhe com toda a sorte de palavras consoladoras e suplicantes: pedia-lhe que sossegasse, que o conhecesse; mas de repente ela desesperava-se, gritava pela carta, maldizia Juliana - ou então dizia palavras de amor, enumerava somas de dinheiro... Jorge temia que aquele delírio revelasse tudo a Julião, às criadas; tinha um suor à raiz dos cabelos - e quando ela, um momento, julgando-se no Paraíso - e nas exaltações do adultério, chamou Basílio, pediu champanhe, teve palavras libertinas, Jorge fugiu da alcova alucinado, foi. para a sala às escuras, atirou-se para o divã a soluçar, arrepelou-se, blasfemou.
— Está em perigo? - perguntou Sebastião.
— Está - disse Julião. - Se sentisse os sinapismos, ao menos! Mas estas malditas febres cerebrais...
Calaram-se vendo Jorge entrar na alcova, com o rosto manchado, esguedelhado.
E Julião tomando-o pelo braço, levando-o para fora:
— Ouve lá, é necessário cortar-lhe o cabelo, e rapar-lhe a cabeça.
Jorge olhou-o com um ar estúpido:
— O cabelo? - E agarrando-lhe os braços: - Não, Julião, não, hem? Pode se fazer outra coisa. Tu deves saber. O cabelo não! Não! Isso não, pelo amor de Deus! Ela não está em perigo. Para quê?
Mas aquela massa de cabelo era o diabo, impedia a ação da água!
— Amanhã, se for necessário. Amanhã! Espera até amanhã... Obrigado, Julião, obrigado!
Julião consentiu, contrariado. Fazia então umedecer constantemente as compressas da cabeça, e como Mariana trêmula, desjeitosa, molhava muito o travesseiro, foi Sebastião que se colocou à cabeceira da cama, toda a noite, espremendo sem cessar uma esponja, de onde a água gotejava lentamente; tinham jarros fora da varanda, na sala, para dar à água uma frialdade gelada. O delírio alta noite acalmara um pouco. Mas o seu olhar injetado tinha uma aspecto selvagem: as pupilas pareciam apenas um ponto negro.
Jorge, sentado aos pés da cama, com a cabeça entre as mãos, olhava para ela: lembravam-lhe vagamente outras noites de doença assim, quando ela tivera a pneumonia; e melhorara! Até ficara mais linda, com tons de palidez que lhe adoçavam a expressão! Iriam para o campo quando ela convalescesse; alugaria uma casinha; voltaria à noite no ônibus, e vê-la-ia de longe na estrada vindo ao seu encontro, com um vestido claro, na tarde suave!... Mas ela gemia, ele erguia os olhos sobressaltado; e não lhe parecia a mesma; afigurava-se-lhe que se ia dissipando, desaparecendo naquele ar de febre que enchia a alcova, no silêncio mórbido da noite, e no cheiro da mostarda. Um soluço sacudia-o, e recaía na sua imobilidade.
Joana, em cima, rezava. As velas, com uma chama alta e direita, extinguiam-se.
Enfim uma vaga claridade desenhou nos transparentes brancos os caixilhos da vidraça. Amanhecia. Jorge ergueu-se, foi olhar para a rua. Não chovia; a calçada secava. O ar tinha uma vaga cor de aço. Tudo dormia; e uma toalha, esquecida à janela das Azevedos, agitava-se ao vento frio, silenciosamente.
Quando entrou na alcova Luísa falava com uma voz extinta; sentia muito vagamente os sinapismos, mas a dor de cabeça não cessava. Começou a agitar-se - e o delírio dai a pouco voltou. Julião, então, determinou que se lhe rapasse o cabelo.
Sebastião foi acordar um barbeiro na Rua da Escola - que veio logo, com um ar transido, a gola de casaco levantada; e batendo o queixo começou a tirar imediatamente de um saco de couro as navalhas, as tesouras, devagar, com as mãos moles da gordura das pomadas.
Jorge foi refugiar-se na sala; parecia-lhe que grandes pedaços mutilados da sua felicidade caíam com aquelas lindas tranças, destruídas às tesouradas; e com a cabeça nas mãos recordava certos penteados que ela usava, noites em que os seus cabelos se tinham desmanchado nas alegrias da paixão, tons com que brilhavam à luz... Voltou ao quarto, atraído irresistivelmente; sentiu na alcova o ruído seco e metálico das tesouras; sobre a mesa, numa caixa de sabão, estava um velho pincel de barba, entre flocos de espuma... Chamou Sebastião baixo:
— Dize-lhe que se avie! Estão-me a matar a fogo lento! É demais. Que ande depressa!
Foi à sala de jantar, errou pela casa; a manhã fria clareava; erguera-se vento, que ia levando, aos pedaços, nuvens de um tom alvadio.
Quando tornou a entrar no quarto, o barbeiro guardava as navalhas com a mesma lentidão mole; e tomando o seu chapéu desabado, saiu em bicos de pés murmurando num tom funerário:
— Estimo as melhoras. Deus há de permitir que não seja nada...
O delírio com efeito daí a uma hora acalmou; - e Luísa caiu numa sonolência prostrada com gemidos fracos, que saíam de seus lábios como a lamentação interior da vida vencida.
Jorge tinha então dito a Sebastião que desejava chamar o Dr. Caminha. Era um médico velho que tratara a sua mãe, e que curara Luísa da pneumonia, no segundo ano de casada. Jorge conservara uma admiração agradecida por aquela reputação antiquada; e agora a sua esperança voltava-se sofregamente para ele, ansiando pela sua presença como pela aparição de um santo.