Authors: Eça de Queirós
— Que expiação! Que expiação, Santo Deus!
De repente, como desvairada, agarrou Joana pelos braços, e falando-lhe junto do rosto:
Joana, vá-se pelo amor de Deus, vá-se! Não diga nada! Despeça-se você! - E perdendo inteiramente todo o respeito próprio, caiu de joelhos, diante da cozinheira, soluçando: - Pelas cinco chagas de Cristo, vá, Joana, minha rica vá! Peço-lhe eu, Joana! Pelo amor de Deus!
A rapariga, assombrada, rompeu num choro estridente:
— Vou, sim, minha senhora!...Vou, sim, minha rica senhora!...
— Sim, Joana, sim. Eu dou-lhe alguma coisa. Você bem vê... Não chore... Espere...
Desceu ao quarto correndo, tirou da gaveta duas libras das suas economias, voltou, galgando os degraus, meteu-lhas na mão, dizendo-lhe baixo:
— Faça uma trouxa, eu amanhã lhe mandarei o baú.
— Sim, minha senhora, - soluçava a rapariga, babada de dor - sim, minha rica senhora!
Luísa veio deixar-se cair de bruços sobre a sua chaise longue, num choro convulsivo também, desejando a morte, pedindo, num terror, piedade a Deus!
Mas a voz áspera de Juliana disse bruscamente à porta:
— Então em que ficamos?
A Joana vai-se. Que quer mais?
— Que saia já! disse a outra imperiosamente. - Que o jantar o faço eu. Por hoje, já se vê!
As lágrimas de Luísa secavam-se, de raiva.
— E a senhora agora ouça!
O tom de Juliana era tão insultante, que Luísa ergueu-se como ferida.
E Juliana, ameaçando-a, do alto, com o dedo erguido:
— E a senhora agora é andar-me direita, senão eu lhas cantarei!...
E voltou as costas, batendo os tacões.
Luísa olhou em roda, como se um raio tivesse atravessado o quarto; mas tudo estava imóvel e correto; nem uma prega das cortinas se movera, e os dois pastorinhos de porcelana sobre o toucador sorriam pretensiosamente.
Então tirou o roupão violentamente, passou um vestido sem apertar o corpete, vestiu por cima um casaco largo de inverno, atirou o chapéu para a cabeça despenteada, saiu, desceu a rua tropeçando nas saias, quase a correr.
O Paula saltou para o meio da rua para a seguir; viu-a parar à porta de Sebastião, e veio dizer à estanqueira:
— Em casa do Engenheiro há novidade!
E ficou plantado à porta com os olhos cravados para as janelas abertas, onde as bambinelas de repes verdes caiam com as suas pregas imóveis.
— O Sr. Sebastião? - perguntava Luísa à rapariguita sardenta, que correra a abrir a porta.
E ia entrando pelo corredor.
— Na sala - disse a pequena.
Luísa subiu; sentia sons de piano; abriu violentamente a porta e correndo para ele, apertando as mãos contra o peito, numa voz angustiosa e sumida:
— Sebastião, escrevi uma carta a um homem, a Juliana apanhou-ma. Estou perdida!
Ele ergueu-se devagar, assombrado, muito branco; viu-lhe o rosto manchado, o chapéu malposto, a aflição do olhar.
— Que é? Que é?
— Escrevi a meu primo - repetiu, com os olhos cravados nele, ansiosamente - a mulher apanhou-me a carta... Estou perdida!
Fez-se muito pálida, os olhos cerraram-se-lhe.
Sebastião amparou-a, levou-a meio desmaiada para o sofá de damasco amarelo. E ficou de pé, mais descorado que ela, com as mãos nos bolsos do seu jaquetão azul, imóvel, estúpido.
De repente correu fora, trouxe um copo de água, borrifou-lhe o rosto ao acaso. Ela abriu os olhos, as suas mãos errantes apalparam em redor, fitou-o espantada, e deixando-se cair sobre o braço do canapé, com o rosto escondido nas mãos, rompeu num choro histérico.
O seu chapéu caíra. Sebastião apanhou-o, sacudiu-lhe delicadamente as flores, pô-lo sobre a jardineira com cuidado; e vindo nas pontas dos pés debruçar-se junto dela:
— Então! Então! - murmurava. E as suas mãos, tocando-lhe de leve o braço, tremiam como folhas.
Quis dar-lhe água para a sossegar: ela recusou com a mão, endireitou-se devagar no sofá, limpando os olhos, assoando-se com grandes soluços.
— Desculpe, Sebastião, desculpe - dizia. Bebeu então um gole de água, ficou com as mãos no regaço, quebrada; e, uma a uma, as suas lágrimas silenciosas caíam sem cessar.
Sebastião foi fechar a porta - e vindo ao pé dela com muita doçura:
— Mas então? Que foi?
Ela ergueu para ele a sua face chorosa, onde os olhos brilhavam febrilmente, olhou-o um momento, e deixando pender a cabeça, toda humilhada:
— Uma desgraça, Sebastião, uma vergonha! - murmurou.
— Não se aflija! Não se aflija!
Sentou-se ao pé dela, e baixo, com solenidade:
— Tudo o que eu puder, tudo o que for necessário, aqui me tem!
— Oh, Sebastião!... - exclamou num impulso de reconhecimento humilde; e acrescentou: - Acredite, tenho sido bem castigada! O que eu tenho sofrido, Sebastião!
Esteve um momento com os olhos cravados no chão; e agarrando-lhe o braço de repente, com força, as palavras romperam abundantes e precipitadas, como os borbulhões de uma água comprimida que rebenta.
— Apanhou-me a carta, não sei como, por um descuido meu! Ao princípio pediu-me seiscentos mil réis. Depois começou a martirizar-me... Tive de lhe dar vestidos, roupa, tudo! Mudou de quarto, servia-se dos meus lençóis, dos finos. Era a dona da casa. O serviço quem o faz sou eu!... Ameaça-me todos os dias; é um monstro. Tudo tem sido baldado, boas palavras, bons modos... E onde tenho eu dinheiro? Pois não é verdade? Ela bem via... O que eu tenho sofrido! Dizem que estou mais magra, até o Sebastião reparou. A minha vida é um inferno. Se Jorge soubesse!... Aquela infame queria hoje dizer-lhe tudo!... E trabalho como uma negra. Logo pela manhã a limpar e varrer. Às vezes tenho de lavar as xícaras do almoço. Tenha piedade de mim, Sebastião, por quem é, Sebastião! Coitada de mim, não tenho ninguém neste mundo!
E chorava, com as mãos sobre o rosto.
Sebastião, calado, mordia o beiço; duas lágrimas rolavam-lhe também pela
face, sobre a barba. E levantando-se, devagar:
— Mas Santo nome de Deus, minha senhora! Por que não me disse há mais tempo?
— Ó Sebastião, podia lá! Uma vez estive pra lho dizer... Mas não pude, não pude!
— Fez mal...
— Esta manhã o Jorge quis pô-la fora. Embirra com ela, percebe os desmazelos. Mas não desconfia de nada, Sebastião!... - E desviou os olhos, muito escarlate. - Escarnecia-me às vezes por eu parecer tão apaixonada por ela... Mas esta manhã zangou-se, mandou-a embora. Apenas ele saiu, veio como uma fúria, insultou-me...
— Santo Deus! - murmurava Sebastião assombrado, com a mão sobre a testa.
— Talvez não acredite, Sebastião, sou eu que faço os despejos!...
— Mas merece a morte, esta infame! - exclamou batendo com o pé no chão.
Deu alguns passos pesados pela sala, devagar, as mãos nos bolsos, os seus largos ombros curvados. Voltou a sentar-se ao pé dela, e tocando-lhe timidamente no braço, muito baixo:
— É necessário tirar-lhe as cartas...
— Mas como?
Sebastião coçava a barba, a testa.
— Há de se arranjar - disse, por fim.
Ela agarrou-lhe a mão:
— Oh, Sebastião, se fizesse isso!
— Há de se arranjar.
Esteve um momento calculando - e com o seu tom grave:
— Eu vou-me entender com ela... É necessário que ela esteja só em casa... Podiam ir ao teatro, esta noite.
Levantou-se lentamente, foi buscar o Jornal do Comércio sobre a mesa, olhou os anúncios:
— Podiam ir a São Carlos, que acaba mais tarde... É o Fausto... Podiam ir ver o Fausto...
— Podíamos ir ver o Fausto... - repetiu Luísa, suspirando.
E então, muito chegados, ao canto do sofá, Sebastião foi-lhe dizendo um plano, em palavras baixas, que ela devorava, ansiosa.
Devia escrever a D. Felicidade, para a acompanhar ao teatro... Mandar um recado a Jorge, prevenindo-o que o iriam buscar ao Hotel Gibraltar... E a Joana? A Joana deixara a casa. Bem. Às nove horas, então. Juliana estaria só.
— Vê como tudo se arranja? - disse ele, sorrindo.
Era verdade... Mas daria a mulher as cartas?
Sebastião tornou a coçar a barba, a testa:
— Há de dar - disse.
Luísa olhava-o quase com ternura: parecia-lhe ver, na sua face honesta, uma alta beleza moral. E de pé diante dele, com uma melancolia na voz:
— E vai fazer isso por mim, Sebastião, por mim, que fui tão má mulher...
Sebastião corou, respondeu encolhendo os ombros:
— Não há más mulheres, minha rica senhora, há maus homens, é o que há!
E acrescentou logo:
— Eu vou buscar o camarote. Uma boa frisa, hem?... Uma frisazinha ao pé do palco...
Sorria para a tranqüilizar. Ela punha o chapéu, descia o véu com pequeninos soluços tristes, que voltavam a espaços.
No corredor encontraram a tia Joana com os braços abertos: beijou muito Luísa; aquela visita era um milagre! E que bonita que estava! Era a flor do bairro!
— Está bom, tia Joana, está bom - disse Sebastião, afastando-a brandamente.
Ora que não fosse metediço! Já lá a tinha tido mais de meia hora, também ela agora a queria um bocadinho! Assim é que ele devia ter uma mulherzinha! Uma rapariga de bem! Uma açucena!
Luísa corava, embaraçada.
E o Sr. Jorge? Que era feito dele? Ninguém o via. E a D. Felicidade?
— Está bom, basta, tia Joana! - fez Sebastião impaciente.
— Olha o sôfrego!... Ninguém lhe come a menina!... Cruzes!...
Luísa sorriu; lembrou-se então de repente que não tinha por quem mandar os bilhetes a D. Felicidade e a Jorge, ao hotel. Sebastião fê-la entrar logo embaixo no escritório: que escrevesse, ele os mandaria; escolheu-lhe o papel, molhando-lhe a pena - mais pronto, mais dedicado desde que a sabia infeliz. Luísa fez o bilhete para Jorge; e como apesar das suas aflições, se lembrou com terror de certo vestido verde decotado de D. Felicidade, acrescentou num P.S., no bilhete para ela: "o melhor é vires de preto, e não fazeres grande toalete. Nada de decotes nem de cores claras".
Quando entrou em casa, viu um galego saindo com a trouxazita de Joana. E logo no corredor sentiu a voz grossa da rapariga, que das escadas da cozinha dizia para cima, ameaçadoramente:
— Torne eu a apanhá-la, que não me sai viva das mãos, sua bêbeda!
— Bufa! Bufa! - gritou de cima Juliana. - Mas vai-te indo para o olho da rua!
Luísa escutava mordendo os beiços. Em que se convertera a sua casa! Uma praça! Uma taberna!
— Se eu te apanho! - rosnava a Joana descendo.
— Rua! Rua, sua porca! - gania a Juliana.
Luísa então chamou a rapariga:
— Joana, não procure casa, venha por aqui além de amanhã - disse-lhe baixo.
Juliana em cima cantava a Carta Adorada, com um júbilo estridente.
E daí a pouco desceu, veio dizer, muito secamente, que estava o jantar na mesa.
Luísa não respondeu. Esperou que ela subisse à cozinha, correu à sala de jantar, trouxe pão, um prato de marmelada, uma faca, veio fechar-se no quarto; - e ali jantou, a um canto da jardineira.
Às seis horas um trem parou à porta. Devia ser Sebastião! Foi ela mesma abrir, em bicos de pés. Era ele, animado, vermelho, com o chapéu na mão: trazia-lhe a chave da frisa número dezoito...
— E isto...
Era um ramo de camélias vermelhas, rodeadas de violetas dobradas.
— Oh, Sebastião! - murmurou ela, com um reconhecimento comovido.
— E carruagem, tem?
— Não.
— Eu cá mando. As oito, hem?
E desceu, todo feliz de a servir. Ela seguiu-o com o olhar que se umedecia. Foi à janela do quarto vê-lo sair. - Que homem!" - pensava. E cheirava as violetas, voltava o ramo na mão, sentia também um prazer doce na proteção dele, nos seus cuidados.
Nós de dedos bateram à porta do quarto:
— Então a senhora não quer jantar? - disse a voz impaciente de Juliana, de fora.
— Não.
— Mais fica!
D. Felicidade veio um pouco antes das oito. Luísa ficou tranqüila, vendo-a com vestido preto afogado, e o seu adereço de esmeraldas.
— Então que é isto? Que estroinice é esta, vamos a saber? - disse logo, muito alegre, a excelente senhora.
Um capricho! - O Jorge tinha jantado fora, ela sentira-se tão só!... Dera-lhe o apetite de ir ao teatro. Não pudera resistir... Tinham de o ir buscar pelo Hotel Gibraltar.
— Eu tinha acabado de jantar quando recebi o teu bilhete. Fiquei!... E estive para não vir - disse, sentando-se, com pancadinhas muito satisfeitas nas pregas do vestido. - Apertar-me depois de jantar! Felizmente não tinha comido quase nada!
Quis então saber o que ia. O Fausto? Ainda bem! De que lado era a frisa? Dezoito. Perdiam a vista da família real, era pena!... Pois estava mais longe daquela noitada de teatro!... - E erguendo-se passeava diante do toucador com olhares de lado, alisando os bandós, ajeitando as pulseiras, entalada nos espartilhos, a pupila luzidia.
Uma carruagem parou à porta.
— O trem! - disse, toda risonha.
Luísa calçando as luvas, já com a capa, olhava em redor: o coração batia-lhe alto; nos seus olhos havia uma febre. Não lhe faltava nada? - perguntou D. Felicidade. A chave da frisa? O lenço?
— Ai! O meu ramo! - exclamou Luísa.
Juliana ficou espantada quando a viu vestida para teatro. Foi alumiar, calada; e atirando a cancela com uma pancada insolente:
— Não tem mesmo vergonha naquela cara! - rosnou.
O trem já rodava quando D. Felicidade rompeu a gritar, batendo nos vidros:
— Ai? - Espere, pare! Que ferro, esqueceu-me o leque! Não posso ir sem leque!
— Pare, cocheiro!
— Faz-se tarde, filha, dou-te o meu. Toma! - fez Luísa impaciente.
Aquelas agitações abalavam a digestão comprimida de D. Felicidade; felizmente, como ela dizia, arrotava! Graças a Deus, louvada seja Nossa Senhora, que podia arrotar!
Mas a descida do Chiado alegrou-a muito. Grupos escuros, onde se gesticulava, destacavam às portas vivamente alumiadas da Casa Havanesa; os trens passavam para o lado do Picadeiro, com um rápido reluzir de lanternas ricas, que alumiavam as bandas brancas dos capotes dos criados. D. Felicidade, com a sua face jubilosa à portinhola, gozava a claridade do gás nas vitrinas, o ar de inverno; e foi com uma satisfação que viu o guarda-portão do Gibraltar, de calções vermelhos, vir com o boné na mão, à portinhola.