Authors: Eça de Queirós
— E ontem à noite esteve cá, o Sô Guedes? - insistiu o sujeito de jaquetão com os cotovelos sobre a mesa, fumando como uma chaminé.
— Esteve tarde. Lá pelas duas horas.
O Conselheiro sacudiu o papel com um desespero mudo; por trás dos vidros da luneta escura fuzilavam-lhe nos olhos os despeitos homicidas de autor interrompido. Mas prosseguiu:
— "...E vós, ó almas sensíveis, vertei as lágrimas, mas vertendo-as, não percais de vista que o homem deve curvar-se aos decretos da Providência..."
E interrompendo-se:
— Isto é para dar coragem ao nosso pobre Jorge! - Continuou: - "... da Providência. Deus conta com mais um anjo, e a sua alma brilha pura..."
— Esteve com a pequena, o Sô Guedes? - fez o sujeito, quebrando no mármore da mesa a cinza do charuto.
O Conselheiro suspendeu-se, pálido de raiva.
— Deve ser pessoa da mais baixa extração! - rosnou com ódio.
E o criado erguendo a vozinha fina detrás do balcão:
— Não, não; tem vindo agora com uma espanhola daí de cima da rua. Uma magrinha, com o cabelo eriçado, uma capa vermelha.
— A Lola! - acudiu o outro com satisfação. E espreguiçou-se com voluptuosidade à recordação da Lola.
O Conselheiro agora apressava-se:
— "... E de resto, o que é a vida? Uma rápida passagem sobre o orbe, e vão sonho de que acordamos no seio do Deus dos Exércitos, de que todos nos indignos vassalos."
E com esta frase monárquica o Conselheiro terminou.
— Que lhe parece, com franqueza?
Julião sorveu o fundo da chávena, e colocando-a devagar no pires, lambendo os beiços:
— É para imprimir?
— Na Voz Popular com tarjeta preta.
Julião coçou convulsivamente a caspa, e erguendo-se:
— Está muito bom. Muito bom, Conselheiro!
E Acácio procurando o troco para o moço:
— Creio que está digno dela, e de mim!
E saíram calados.
A noite estava muito escura; erguera-se um nordeste frio; gotas de chuva tinham caído. Ao Loreto, Julião parou subitamente; e exclamou:
— Ai, esquecia-me! Sabe a novidade, Conselheiro? A D. Felicidade recolhe-se à Encarnação.
— Ah!
— Disse-mo agora. Eu fui justamente vê-la antes de ir ver um doente à Rua da Rosa. Estava com uma febrezita. Coisa de nada... A comoção, o susto! E deu-me parte: recolhe-se amanhã à Encarnação.
O Conselheiro disse:
— Sempre conheci naquela senhora idéias retrógradas. É o resultado das manobras jesuíticas, meu amigo! - E ajuntou com a melancolia do liberal descontente: - A reação levanta a cabeça!
Julião tomou familiarmente o braço do Conselheiro, e sorrindo:
— Qual reação! É por sua causa, ingrato...
O Conselheiro estacou:
— Que quer o meu nobre amigo insinuar?
— Sim, homem! Não sei como diabo descobriu uma coisa grave...
— O quê? Acredite...
— O que eu também descobri, seu maganão! Que o Conselheiro tem duas travesseirinhas na cama, tendo só uma cabeça... Disse-mo ela! - E rindo muito, dizendo-lhe "adeus! adeus!" desceu rapidamente a Rua do Alecrim. O Conselheiro ficou imóvel, no largo, de braços cruzados, como petrificado. - Que infeliz senhora! Que funesta paixão! - murmurou enfim. E acariciou o bigode, com satisfação.
Como tinha de passar a limpo o necrológio apressou-se a entrar em casa. Abancou com uma manta sobre os joelhos; bem depressa as responsabilidades de prosador distraíram-no das preocupações de homem; e até às onze horas a sua bela letra cursiva e burocrática desenrolou-se nobremente sobre uma larga folha de papel inglês, no silêncio do seu Sanctum Sanctotum. Terminava quando a porta rangeu, e a Adelaide, com um xale forte pelos ombros, veio dizer, numa voz constipada:
— Então hoje não se faz nenê?
— Não tardo, minha Adelaide, não tardo!
E releu baixo, enlevado. Pareceu-lhe então que o final não era comovente: queria terminar por uma exclamação dolorosa, prolongada como um "ai"! Meditou, com os cotovelos sobre a mesa, a cabeça entre os dedos muito abertos; Adelaide então, chegando-se devagar, passou-lhe a mão pela calva; aquele doce amoroso fez decerto saltar a idéia como uma faísca, porque tomou rapidamente a pena, e acrescentou:
— "Chorai! Chorai! Enquanto a mim, a dor sufoca-me!"
Esfregou as mãos com orgulho. Repetiu alto num tom plangente:
— "Chorai, chorai; enquanto a mim, a dor sufoca-me!" - E passando o braço concupiscente pela cinta da Adelaide, exclamou:
— Está de fazer sensação, minha Adelaide!
Ergueu-se. Tinha terminado o seu dia. Fora bem preenchido e digno; de manhã certificara-se com regozijo no Diário do Governo, que a família real "passava sem novidade"; cumprira o dever de amigo, acompanhando Luísa aos Prazeres numa carruagem da Companhia; a alta das inscrições assegurava-lhe a paz da sua pátria; compusera uma prosa notável; a sua Adelaide amava-o! E decerto se deliciou na certeza destas felicidades, que contrastavam tanto com as imagens sepulcrais que a sua pena revolvera, porque Adelaide ouviu-o murmurar:
— A vida é um bem inestimável! - E acrescentar como bom cidadão: Sobretudo nesta era de grande prosperidade pública!
E entrou no quarto com a cabeça ereta, o peito cheio, os passos firmes, erguendo alto o castiçal.
A sua Adelaide seguia-o bocejando; estava cansada da constipação e - de uma hora de ternuras, que tivera à tardinha, com o louro e meigo Arnaldo, caixeiro da Loja da América.
Àquela hora dois homens desciam de uma carruagem à porta do Hotel Central; um trazia uma ulster de xadrez, o outro uma longa peliça. Um ônibus quase ao mesmo tempo parou, carregado de bagagens.
Um criado alemão, que conversava embaixo com o porteiro, reconheceu-os logo, e tirando o coco:
— Oh, senhor D. Basílio! Oh, senhor visconde!
O Visconde Reinaldo, que batia os pés nas lajes, rosnou de dentro da sua peliça:
— É verdade, aqui estamos outra vez na pocilga!
Mas àquela hora?
— A que horas queria você que chegássemos? Às horas da tabela, talvez! Doze horas de atraso, essa bagatela! Em Portugal é quase nada...
— Houve algum transtorno? - perguntava o criado com solicitude, seguindo-os pela escada.
E Reinaldo, pisando com um pé nervoso o esparto do corredor:
— O transtorno nacional! Descarrilou tudo! Estamos aqui por milagre! Abjeto país!... - E desabafava a sua cólera com o criado: tê-la-ia desabafado com as pedras da rua, tanto era o excesso da bílis: - Há um ano que a minha oração é esta: "Meu Deus, manda-lhe outra vez o terramoto!" Pois todos os dias leio os telegramas a ver se o terramoto chegou... e nada! Algum ministro que cai, ou algum barão que surge. E de terramoto nada! O Onipotente faz ouvidos de mercador às minhas preces... Protege o país! Tão bom é um como outro! - E sorria, vagamente reconhecido a uma nação, cujos defeitos lhe forneciam tantas pilhérias.
Mas quando o criado, muito consternado, lhe declarou - que não havia senão um salão e uma alcova com duas camas, no terceiro andar - a cólera de Reinaldo não conheceu restrições:
— Então havemos de dormir no mesmo quarto? Você pensa que o senhor D. Basílio é meu amante, seu devasso? Está tudo cheio? Mas quem diabo se lembra de vir a Portugal? Estrangeiros? É justamente o que me espanta! - E encolhendo os ombros com rancor: - É o clima, é o clima que os atrai! O clima, este prodigioso engodo nacional! Um clima pestífero. Não há nada mais reles de que um bom clima!...
E não cessou de invectivar o seu país, enquanto o criado à pressa, sorrindo servilmente, punha sobre a jardineira pratos, fiambre, um frango frio e borgonha.
Reinaldo vinha vender a última propriedade, e acompanhara Basílio que voltava a terminar "o secante negócio da borracha". E não cessava de rosnar soturnamente de dentro da peliça:
— Aqui estamos! Aqui estamos no chiqueiro!
Basílio não respondia. Desde que chegara a Santa Apolônia, recordações do Paraíso, da casa de Luísa, de todo aquele romance do verão passado, começavam a voltar, a atrai-lo, com um encanto picante. Fora encostar-se à vidraça. Uma lua fria, lívida, corria agora entre grossas nuvens cor de chumbo; às vezes uma grande malha luminosa caía sobre a água, faiscava; depois tudo escurecia; vagas mastreações desenhavam-se na obscuridade difusa; e algum fanal de navio tremeluzia friamente.
"Que fará ela a esta hora!" - pensava Basílio. - naturalmente, deitava-se... Mal sabia que ele estava ali, num quarto do Hotel Central...
Cearam.
Basílio levou a garrafinha de conhaque para a cabeceira da cama; e com a cara coberta de pó-de-arroz, os folhos da sua camisa de dormir abertos sobre o peito, muito estendido, soprando o fumo do charuto, gozava uma lassidão confortável.
— E amanhã estou-te daqui a ver - disse Reinaldo. - Vai-te logo meter com a prima!
Basílio sorriu; o seu olhar errou um pouco pelo teto; certas recordações das belezas dela, do seu temperamento amoroso, trouxeram-lhe uma vaga voluptuosidade; espreguiçou-se. - Que diabo! - disse - é uma linda rapariga! Vale imenso a pena! - Bebeu mais um cálice de conhaque, e daí a pouco dormia profundamente. Era meia-noite.
Àquela hora Jorge acordava, e sentado numa cadeira, imóvel, com soluços cansados que ainda o sacudiam, pensava nela. Sebastião, no seu quarto, chorava baixo. Julião, no posto médico, estendido num sofá, lia a Revista dos Dois Mundos. Leopoldina dançava numa soirée da Cunha. Os outros dormiam. E o vento frio que varria as nuvens e agitava o gás dos candeeiros ia fazer ramalhar tristemente uma árvore sobre a sepultura de Luísa.
Daí a dois dias pela manhã Basílio, no Rossio, procurava, com o olhar em redor, um cupê decente. Mas o Pintéus, avistando-o de longe, lançou logo a parelha.
— Cá está o Pintéus, meu amo! - Parecia encantado de tornar a ver o senhor D. Basilinho, e apenas ele lhe disse:
— Lá acima, à Patriarcal, ó Pintéus!
— À casa da senhora? Pronto, meu amo. - E endireitando-se na almofada, bateu.
Quando a tipóia parou à porta de Jorge - o Paula saiu para a rua, a estanqueira correu de dentro do balcão, a criada do doutor debruçou-se logo na janela. E imóveis arregalavam os olhos.
Basílio tocara a campainha, um pouco nervoso: esperou, arremessou o charuto, tomou a puxar o cordão com força.
— As janelas estão trancadas, meu amo - disse o Pintéus.
Basílio recuou ao meio da rua: as portadas verdes estavam fechadas, a casa tinha um aspecto mudo.
Basílio dirigiu-se ao Paula:
— Os senhores que ali moram, estão para fora?
— Já não moram - disse o Paula soturnamente, passando a mão sobre o bigode.
Basílio fixou-o, surpreendido daquela entonação fúnebre.
— Onde vivem agora então?
O Paula escarrou, e cravou em Basílio um olhar desolado:
— Vossa Senhoria é o parente?
Basílio disse sorrindo.
— Sou o parente, sou.
— Então não sabe?
— O quê, homem de Deus?
O Paula esfregou o queixo, e bamboleando a cabeça:
— Pois sinto dizer-lho. A senhora morreu.
— Que senhora? - perguntou Basílio. E fez-se muito branco.
— A senhora! A senhora D. Luísa, a mulher do Sr. Carvalho, o Engenheiro... E o Sr. Jorge está em casa do Sr. Sebastião. Ali ao fim da rua. Se Vossa Senhoria lá quer ir...
— Não! - fez Basílio com um gesto rápido da mão. Os beiços tremiam-lhe um pouco. - Mas que foi?
— Uma febre! Rapou-a em dois dias!
Basílio dirigiu-se ao cupê devagar, com a cabeça baixa. Olhou mais uma vez para a casa; fechou com força a portinhola. O Pintéus bateu para a Baixa.
O Paula então aproximou-se do estanque:
— Não lhe fez muita mossa! Fidalgos! Canalha! - murmurou.
A estanqueira disse lamentosamente:
— Pois eu não sou parenta, e todas as noites lhe rezo dois padre-nossos por alma...
— E eu! - suspirou a carvoeira.
— Há de lhe isso servir de muito! - rosnou o Paula, afastando-se.
Estava ultimamente mais amargo. Vendia pouco. Aquelas mortes na rua traziam-no desconfiado da vida. Cada dia detestava mais os padres! E todas as noites lia a Nação que lhe emprestava o Azevedo, repastando-se com rancor de artigos devotos que o exasperavam, o impeliam para o ateísmo; e o descontentamento das coisas públicas inclinava-o para a comuna. Como ele dizia, achava tudo uma porcaria.
Foi decerto sob este sentimento que, voltando-se à porta do estanque, disse às vizinhas com um ar lúgubre:
— Sabem o que isto é? Sabem o que tudo isto é? - Fazia um gesto que abrangia o Universo. Fitou-as de um modo irado, e rosnou esta palavra suprema:
— Um monte de estrume!
Ao descer a Rua do Alecrim, Basílio viu o Visconde Reinaldo à porta do Hotel Street. Mandou parar o Pintéus, e saltando do cupê:
— Sabes?
— O quê?
— Minha prima morreu.
O Visconde Reinaldo murmurou polidamente:
— Coitada!...
E foram descendo a rua, de braço dado, até ao Aterro. O dia estava glorioso; um friozinho sutil errava; no ar luminoso, leve, trespassado de sol, as casas, os galhos das árvores, os mastros das faluas, as mastreações dos navios tinham uma nitidez muito desenhada; os sons sobressaíam com uma tonalidade cantada e alegre; o rio reluzia como um metal azul; o vapor de Cacilhas ia soltando rolos de fumo que tomavam a cor do leite; e ao fundo as colinas faziam na pulverização da luz uma sombra azulada, onde as casarias caiadas rebrilhavam.
E os dois, passeando devagar, iam falando de Luísa.
O Visconde Reinaldo, delicado, lamentava a pobre senhora, coitada, que se tinha deixado morrer por um tempo tão lindo! - Mas em resumo, sempre achara aquela ligação absurda...
Porque enfim fossem francos: que tinha ela? Não queria dizer mal da pobre senhora que estava naquele horror dos Prazeres, mas a verdade é que não era uma amante chique; andava em tipóias de praça; usava meias de tear; casara com um reles indivíduo de secretaria; vivia numa casinhola, não possuía relações decentes; jogava naturalmente o quino, e andava por casa de sapatos de ourelo; não tinha espírito, não tinha toalete... que diabo! Era um trambolho!
— Para um ou dois meses que eu estivesse em Lisboa... - resmungou Basílio com a cabeça baixa.
— Sim, para isso talvez. Como higiene! - disse Reinaldo com desdém.
E continuaram calados, devagar. Riram-se muito de um sujeito que passava governando atarantadamente dois cavalos pretos: - Que faéton! Que arreios! Que estilo! Só em Lisboa!...