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Mesmo que jamais esboçasse em voz alta, Theo sabia no fundo de seu ser que suas futuras palavras dependeriam do que ouviria sair da boca de Ayra naquela tarde. Ele estava temeroso, mas também aliviado.

Independe da resolução final, era o dia de pôr fim ao seu martírio pessoal.

Ayra o observou por um longo momento, algumas me-

chas de seu cabelo violeta lhe moldavam o rosto. Sorriu internamente, suspirou por fora. Mordeu o lábio inferior.

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L u c i a n a A r a ú j o

Adiava o momento de entregar para Theo os seus achismos, sentia que os próximos segundos seriam cruciais para o que lhes aconteceria dali para frente.

A bailarina pensou e pensou, sentiu e entregou-se. Talvez o local e o tempo não fossem favoráveis para aquele even-to, mas era tudo o que eles tinham e, juntos, até o mínimo tornava-se grandioso.

Sem aviso e tão suave quanto um piscar de olhos, Ayra chorou.

As lágrimas escorriam por sua face como cristais líquidos.

Theo a encarou aturdido e, na falta de compreensão para tal atitude dela, apenas a observou derramar aquilo que ele considerava tão precioso.

Do balcão, Florence os olhou consternada. Nada entendia daquele casal que tanto se destacava das dezenas de outros que iam até ali sorver seu chá. Mas, por dentro sabia que havia algo neles que os tornava especiais aos seus olhos.

Florence observou Ayra recompor-se aos pouquinhos, sorriu quando Theo colocou a mão no bolso e de lá tirou um fino lenço de tecido e o estendeu para a garota. Abaixou os olhos quando a bailarina e o poeta trocaram olhares repletos de mensagens silenciosas.

Quando Theo procurou delicadamente a mão de Ayra

em cima da mesa e a apertou com a sua, o coração de Florence apertou-se de algo que poderia ser nomeado como felicidade. Ela percebeu que o casal se entendia sem que fosse preciso proferir palavra alguma. E sentiu falta de alguém que pudesse lhe completar da mesma maneira. Com um último suspiro repleto de vontades escondidas, Florence desviou os olhos e voltou para seu chá.

O casal, alheio ao que lhe cercava, continuou por algum tempo preso em sua redoma, de onde poderia observar e ser observado.

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C a l e i d o s c ó p i o

Ainda que juntos vivenciassem seu próprio universo, em momentos ao acaso, Ayra e Theo permitiam que outros adentrassem em seu pequeno mundo.

poemas nunca lidos

querer-te

e ter-te.

querer

sem te ter,

é não querer.

e não querendo

ter.

cartas esquecidas

Não ouso negar que me surpreendi, Ayra. De tudo que já vivemos juntos até hoje, sua reação ao ler minhas páginas foi a mais inesperada. Entreguei-lhe minha alma de mão beija-da, de braços abertos lhe dei o que nenhum outro ser havia lido antes.

Meu segredo mais bem guardado, talvez até, aquilo que de mais precioso eu possuo.

O que eu por vezes muito raras costumo publicar é inteiramente diferente daquilo que coloquei sob sua guarda.

A essência de um ser é delicada demais para ser tratada com leviandade e, por saber o quão verdadeira é você, não tive receio de mostrar-lhe o que sempre trago junto a mim.

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L u c i a n a A r a ú j o

Que minhas palavras fossem tocar-lhe tanto, eu jamais poderia imaginar.

Não esperava ser grande coisa, representar algo de valor.

O que escrevi foi por mim e para mim, ainda que os mais recentes carreguem um pouco de sua fragrância. Nosso relacionamento não é convencional, disso sempre soubemos e nunca negamos ou escondemos, de modo que eu não poderia desenhar palavras em uma folha de papel sem que nosso romance fosse derramado.

É assim que se sente quando está no palco? Como se nada mais pudesse lhe causar dor?

Deve estar se perguntando que brilho estranho é esse que emana de meus olhos. Não faça isso, pois talvez nem eu mesmo seja capaz de lhe explicar. Acontece que sua presença me atinge com intensidades tão variadas que ficar imóvel em meu buraco pessoal acabou tornando-se insuportável.

Eu vejo você brilhar, Ayra, de um jeito que jamais havia tido a honra de presenciar.

Nem sequer quando você estava no palco. Agora, que você está em fase de reinventar-se, consigo enxergá-la tão limpidamente que minha vontade é me fundir com sua luz e nunca nos deixar apagar.

Estava errado e não temo admitir, nossa relação não foi feita para nos levar ao fundo da desesperança que habitava em nossos corpos. Agora penso diferente, penso com mais clareza, ainda que esta seja um pouco opaca. Foram muitos anos de sujeira para que, de uma hora para outra, meu ser ficasse transparente.

Talvez a verdadeira resposta seja aquela em que sempre acreditamos, que somente você é capaz de me entender verdadeiramente, da mesma forma que somente eu posso decifrá-la.

Mas eu não sei que passo dar daqui em diante, só posso contar com você para me guiar.

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C a l e i d o s c ó p i o

diário abandonado

Foi a primeira vez que vi Theo através de seus olhos.

Pude senti-lo tão intimamente que por vezes achei que estava bisbilhotando seu interior.

Tudo o que li e senti foram de uma grata surpresa. As po-esias de Theo são belas e suaves, algumas vezes angustiantes e tristes. Mas a verdade que transmitem é incontestável.

Vê-lo transfigurado em suas palavras me trouxe claras lembranças de quando meus pés traçavam as linhas dos palcos. O único momento em que eu podia me isolar de todos, onde nada nem ninguém importava, apenas a leveza com a qual eu fazia meu braço subir e descer, a suavidade com a qual conduzia meu corpo através das melodias da música.

Ler Theo me fez perceber que também tranco a sete chaves algo sobre mim, algo que nunca permiti que alguém espias-se. Talvez também tenha chegado a minha hora. A hora de mostrar a ele o que o palco significa para mim, pois ele de peito aberto me apresentou ao seu intimo.

Cada pedacinho dele está contido naquelas linhas, e eu não poderia estar mais maravilhada em ter tido a oportunidade de conhecê-las.

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Capítulo Sete

O pó marrom da livraria cobriu o ambiente quando Theo abriu a porta delicadamente. O ar velho e almiscarado inva-diu seu nariz e de Ayra, fazendo com que eles se sentissem em casa. De mãos dadas, caminharam por entre as pratelei-ras abarrotadas de livros.

O poeta prendia no fundo de sua garganta uma incomen-surável vontade de derramar suas lágrimas.

Aquele encontro não era tão ao acaso quanto todos os outros que já tiveram, seu propósito estava estampado em cada célula do corpo de Theo. Para finalmente entregar toda a sua existência para a mulher que caminhava ao seu lado, era preciso que ela vivenciasse o que de mais importante ele guardava dentro de si.

O amor pelos livros.

Em um canto do lugar, notaram uma garota sentada de pernas cruzadas, rodeada pelos mais diversos livros, presa em um mundo que era só seu e que ninguém mais tinha o direito de visitar. Ao seu lado podiam ver um caderno aberto ao acaso, com um lápis caído despretensiosamente sobre suas folhas e, no alto da que estava aberta, podiam ver um nome rabiscado distraidamente.
Lai
.

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C a l e i d o s c ó p i o

Sorrindo um para o outro, o poeta e a bailarina passaram pela garota da livraria e continuaram sua excursão pelo lugar. A cada passo, Theo sentia que seu coração martelava mais fundo em seu peito, como se cada livro em que ele delicadamente passeava seus dedos fosse uma canção ao qual ele tentava acompanhar o ritmo, sempre trocando rapidamente de um para o outro.

Estar ali, em meio aos tons amadeirados que os cercavam, significava que Theo havia decidido doar-se por inteiro para o que quer que fosse que o futuro estivesse lhe presenteando.

A cada passo que dava, o ser de Ayra sentia-se preenchido.

Theo estava doando-se para ela e por ela e, mesmo que fosse impossível, ou que para o resto do mundo não significasse nada, ela podia sentir de forma latente todo o amor que emanava dos livros para Theo e do poeta para os livros.

Era incompreensível, ainda que absolutamente certo, a maneira que o que estava vivenciando ali a tocava e a emo-cionava. Era como ser levada para uma dimensão totalmente diferente da sua, mergulhar em águas jamais tocadas, adentrar em florestas nunca exploradas.

Era ver e viver um segredo vital, que ninguém antes havia tido o privilégio de ter sussurrado em seu ouvido. Esse segredo pertencia a Theo. E estando ali, Ayra entendia o motivo de o poeta sempre denegrir aquilo que escrevia. Ele sentia-se pequeno demais, indigno demais de ser chamado de escritor, visto que não queria honra igual a que tanto prezava, a mesma honra que se estendia livro após livro da livraria.

Naquele momento Ayra soube que era amor o que a trazia para junto de Theo e que o amaria por toda a vida.

Ele a olhou de soslaio e deu um suave aperto em sua mão, e quando ela o encarou sentiu que rios de lágrimas 5 0

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escorriam por seus olhos. Estava tão absorta em seus pensamentos que nem se dera conta que havia transbordado seus sentimentos para fora.

Delicadamente, Theo beijou lágrima por lágrima e en-tão soube que já bastava. Soube que ela era finalmente sua e que seria por toda a eternidade.

Sem emitir uma palavra, se dirigiram para a saída da livraria, passando novamente pela garota chamada Lai, lançaram-lhe um sorriso que ela jamais veria. Deixaram o lugar com a alma mais leve e a eterna lembrança da menina que vivia em meio aos livros.

poemas nunca lidos

Guardava no coração uma dor

Ao seu lado o amor

Nos pulsos estava sua força

Trazia em seus ombros a esperança

Sentia em seus dedos o calor

Sua face trazia o ardor

Nos olhos o abandono

Lábios presenteavam o desejo

Em sua pele o frio suave

Em seu ser uma vida afável.

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cartas esquecidas

Coisas boas estão por vir, Theo, é o que eu sinto. O que estamos dando um ao outro nada mais é do que a prova latente disto.

Nunca estivemos em uma harmonia tão grande. Nunca soubemos tanto um do outro.

Fico me perguntando se chegará o dia em que, de tanto conhecermos um ao outro, estarmos lado a lado se tornará um sacrifício a ser pago. Mas essa não é hora de pensar em um futuro tão distante, certo? Então talvez devêssemos pensar em algo mais próximo. Qual chá me servirá quando visitá-lo novamente?

Não queria ser breve, Theo, mas às vezes sinto que nosso tempo de troca de cartas está chegando ao fim. Não me pergunte o motivo, mas acho que nossas palavras estão fin-dando. Já não as utilizamos com frequência quando nos encontramos, e, cada vez mais parece que colocá-las em um envelope e darmos um para o outro está perdendo o sentido.

Não existe nada que não possamos falar com nossos olhos.

diário abandonado

Então é isso que significa a felicidade?

Sentir como se estivesse flutuando no espaço, como se fossemos mais leves do que bolhas?

Eu carregava a esperança, é claro, de poder colorir Theo, mas nunca imaginei que fosse possível.

Nunca imaginei que meus passos tortos seriam os responsáveis por dar a alguém a doce alegria de viver.

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L u c i a n a A r a ú j o

Não quero me gabar, longe de mim, não estaria escrevendo essas palavras caso não tivessem saído diretamente da boca dele. Embora eu creia que não mereça tal mérito, mas também sou incapaz de revelar isso para ele.

Ele me chama de sua salvadora. E ainda que eu saiba que, lá no fundo, uma fina escuridão sempre o habitará, não me preocupo.

Todos carregamos luz e trevas em nosso interior, só precisamos que a luz esteja acesa com mais frequência.

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Capítulo Oito

Pararam no meio de uma praia deserta, Theo pegou as mãos de Ayra e as levou até seu rosto, mas não a beijou nos lábios.

Fechou os olhos e apenas sentiu a textura da pele dela.

Quando ele os abriu, o olhar que Ayra encontrou ali a fez ter certeza de que a centelha do universo brilharia pela eternidade.

A areia da praia penetrava em sua pele. Não era uma sensação de todo ruim, Ayra achava que era como ter estrelas sendo esfareladas sobre cada pedacinho seu. Theo estava parado ao seu lado e, ainda que estivessem sob o luar, estavam cercados por um brilho dourado.

Theo passeou lentamente com as mãos pela lateral de Ayra.

Ambos nunca poderão compreender como conseguiram tanta força de vontade naquele momento. Suas almas latejavam pela pele um do outro. Segurando a cintura de Ayra, Theo a deitou e então, com toda a delicadeza, eles se beijaram.

Ayra sentiu as mãos de Theo procurando as suas e permitiu que ele a encontrasse. Apertou-as de leve. Naquele momento a bailarina não percebeu o que aquilo significava. Algum tempo depois, se deu conta de que ele pedia sua permissão e, inconscientemente ou não, ela concedeu. Ela sentiu todo seu 5 5

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corpo acendendo, lentamente, fagulhas invadiam seu sangue e foram levadas dos fios de cabelo às pontas dos pés. Era assim que ele sempre fazia ela se sentir, como se fogos de artifício explodissem um atrás do outro em seu interior.

Foi um início suave, muito tempo havia passado desde a última vez, era preciso que o corpo de um entrasse novamente em sintonia com o corpo do outro para que pudessem dançar juntos uma vez mais.

Uniram seus corpos como há muito não faziam. Entrega-ram e receberam um ao outro, com ternura e afeto, preenchen-do cada vazio que por um acaso tenha escapado ao longo de todo o tempo em que estavam juntos. Naquele instante não tinham nomes, não eram homem ou mulher. Apenas existiam.

Seus corpos permaneceram um sobre o outro, comparti-lhando calor, carinho, medos, vitórias e derrotas. As mãos de Theo passeavam pelos cabelos de Ayra, e os braços dela estavam em volta dele, uma promessa muda de que – de uma forma ou de outra – se pertenciam.

Muito havia se passado, muito havia sido roubado desde aquele primeiro encontro, onde Ayra perdeu seu guarda-

-chuva e o Theo o recuperou.

Nunca imaginaram que um dia chuvoso os levariam até aquele instante.

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