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Naquela noite, Theo e Ayra conheceram o céu dos humanos sem por nem uma única vez terem pensado em se aproximarem de lá. Conheceram o calor do inferno sem se importarem em serem queimados. Reduzidos aos seus nadas, ganharam tudo.

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L u c i a n a A r a ú j o

diário abandonado

Algumas vezes, não preciso colocar em palavras o que carrego dentro de mim.

O simples fato de sentir me basta.

Basta-me saber que, independentemente de verbalizar ou não minhas palavras, eu sei que elas existem e tomam forma.

Contar minha história a mim mesma tornou-se redundante.

Tenho preferido vivê-la, vivenciá-la. Saber que de fato existo, que não me movo por uma realidade alternativa que está alojada em algum paralelo em minha mente. Preciso sentir o ar em meus pulmões, a terra sob meus pés, os diversos sons do mundo em meus ouvidos.

Trancada entre quatro paredes, tendo por única companhia um diário velho e desbotado, tudo o que faço é me afogar em meio a todas as possibilidades que estão estendidas diante de mim. Prender-me onde ninguém pode me achar é uma tentativa falha e inútil de ter controle sobre minha existência.

E quanto mais descontrolada eu for, mais verdadeira me tornarei.

cartas esquecidas

Se eu te oferecer morangos, sua doçura se perderá? E, se ao contrário, derramar gotas de limão em sua boca, seu ser azedará?

Eu me sinto silenciar, Ayra, sinto- me em paz como nunca estive. Como nunca quis estar.

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C a l e i d o s c ó p i o

Minha rendição aconteceu sem o meu consentimento, aconteceu como uma intimação. Era isso ou eu perderia você e, perdendo você, eu já não existiria.

Você consegue ver tudo o que podemos construir lado a lado?

Toda uma vida.

A sua, sobre os palcos. A minha, sob as palavras.

Talvez para alguns não seja suficiente, mas eu sei que é tudo o que precisamos. Acredito também que, de certa forma, sempre serei um poeta degradado, afinal, quem nunca é? Mas se tiver você para me curar ao fim de cada dia, eu poderia suportar tudo.

Também acredito que por uma ou duas vezes os palcos irão lhe faltar. Então você poderá rodopiar no piso de madeira de nossa casa e eu vou lhe aplaudir louca e desesperadamente.

Porque sempre foi você tudo o que eu quis ter e sempre será você tudo o que eu mais preciso.

poemas nunca lidos

Vejo uma estrelar brilhar

Vejo fogo no céu

Vejo a luz apagar

Vejo a lua em seu véu

Ela sente o pulsar

Sente o perfume da flor

Sente o coração alegrar

Ao sorrir com humor

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L u c i a n a A r a ú j o

No baile a meia-noite

A donzela eu encontro

Com meu traje galante

Faço-a tremer em seu centro

Sob o céu estrelado

Valsamos apaixonados

Por todo o infinito

Nosso amor será bendito

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L u c i a n a A r a ú j o

Capítulo Nove

As luzes coloridas foram dando vida ao palco.

O lugar estava quase vazio. Era noite, mas não era dia de espetáculo. Pelo menos não para aquele tipo de apresenta-

ção ao qual o teatro estava acostumado.

Naquela noite, ele receberia presenças ilustres.

Ayra andou por entre as cadeiras tocando uma a uma, sentindo a textura acariciar sua pele. Olhou para Theo que estava parado alguns metros acima dela.

Sorriu.

Seu riso foi um convite. Vagarosamente, ele caminhou de encontro a ela, pegou suas mãos e beijou cada um de seus dedos.

Sorriu.

De mãos dadas caminharam até o palco. Primeiro ela e depois ele, pois ali ele era um intruso. Ali ele só poderia adentrar caso fosse convidado.

E assim ela fez.

Estendeu-lhe a mão o convidando para uma dança. Ele aceitou de bom grado.

Perderam-se em um abraço. Foram embalados pela melodia que tocava em suas mentes sincronizadas.

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C a l e i d o s c ó p i o

Rodopiaram sobre o piso de linóleo.

Aquele pequeno pedaço de paraíso pertencia a ela, e, tendo ele se redimido de seus pecados fora finalmente digno de conhecer o que de mais importante existia para Ayra.

O local onde ela abandonava a si mesma e libertava seu espírito durante a dança.

Eles estavam trocando seus amores. Dando ao outro a oportunidade de ver quem realmente eram por dentro.

Observando os tesouros um do outro puderam assistir os anos da infância, que foram passados em sorrisos e sorvetes, brincadeiras e bagunças. Viram as adolescências, conturba-das e caóticas, algumas vezes suaves e delicadas, mas sempre repletas de algo que pode ser nomeado como
esperança
.

Quando chegaram à vida adulta, o véu branco lhes cobriu, o momento presente não precisava ser visto.

Da mesma forma que o que sentiam não precisava ser nomeado.

diário abandonado

Chegou a hora de ser protagonista do meu enredo, como já havia decidido. É o momento de assumir minha vida e fazê-la a melhor que eu poderia ter.

Já não é mais preciso desabafar minhas inseguranças em meus medos. É hora de assumi-los e conviver harmonica-mente com eles. Talvez eu volte algum dia, para relembrar e recriar tudo o que terá me acontecido, talvez eu volte e só traga alegrias, ou talvez algum dia eu volte para derramar minhas tristezas.

Por hora, tudo o que eu posso afirmar é que acabou o tempo de lamentações. Só preciso de agradecimentos.

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L u c i a n a A r a ú j o

Meu abandono se perdeu. Resgatei-me.

cartas esquecidas

Espere-me na praia ao entardecer, Theo.

Desejo que você me leve para casa esta noite. Nós vamos colocar fogo no mundo.

Venha comigo, Theo. Nós vamos viver tudo aquilo que precisamos viver.

Juntos, nós vamos nos permitir.

Será o primeiro dia do resto de nossas vidas, e apesar de fazer algum tempo que estamos juntos, será também nosso início.

Se algum tempo atrás alguém me falasse que algum dia eu estaria vivendo esse momento, eu daria um riso debocha-do, riria e diria que não passava de bobagem. Até estar com você, eu não acreditava em relacionamentos.

Então, Theo, nós nos encontramos e todas as minhas verdades caíram por terra. Antes mesmo de ter consciência disso, eu quis, desejei desesperadamente viver tudo isso com você.

Sinto um arrepio toda vez que me dou conta de onde essa vontade louca nos fez chegar. E calafrios em supor até onde essa insanidade pode nos levar. Não me importarei se você não se importar.

Quero caminhar sobre as areias da praia, ouvir o borbu-lhar do mar, apreciar o chiado do sol ao tocar a água. Quero me perder no emaranhado de seus pensamentos, alimentar-me de seus beijos, matar minha sede de suas palavras, devo-rar você por inteiro.

Quero me entregar de corpo e alma, desfazer- me de mim mesma e me refazer em seus braços.

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C a l e i d o s c ó p i o

Desejo poder tocar o céu, fazer de você um cometa, de mim uma estrela e te cortejar através dos buracos negros.

Seremos um só por toda a eternidade.

Pelo menos enquanto ela durar.

poemas nunca lidos

Enlouquecer

Eu só quero ser

Louco.

Esquecer

Para não ser

Louco

Aquecer

O seu ser

Louco

Amar

Para sempre ser

Louco

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L u c i a n a A r a ú j o

Capítulo Dez

Era tarde.

O pôr do sol tingia o céu de um cor de rosa adocicado.

Uma cor incomum para permear o horizonte. O laranja ou o vermelho sempre foram mais apropriados ao lugar em que pertenciam por direito.

Mas agora as coisas estavam diferentes.

Para todos.

Naquele instante, olhar o céu era como dar uma espiada no passado, nada mais fazia sentido e isso não importava.

O aqui e o agora era o que de fato merecia atenção, o que possuíam de mais valor. Os dias anteriores, os momentos vi-vidos, as dores e os amores. Tudo deveria ser posto em um velho livro mofado e preso em um baú do tesouro que só seria descoberto depois de dezenas de anos.

Pois essa era uma história que deveria ser contada por gerações e muito além.

Uma história que deveria ser vivida no agora e também no sempre.

Naquele cenário inusitado, uma música soava ao fundo, um casal dançava ali por perto. Um letreiro em neon brilhava com palavras escolhidas ao acaso.

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C a l e i d o s c ó p i o

E, pela primeira vez, nem a música e nem mesmo as palavras importavam.

Caminhavam de mãos dadas, cada um perdido em seu

próprio pensamento. Estavam felizes, é claro, sentiam-se bem. Estavam em paz com suas existências.

Esporadicamente e de forma calorosa, sorriam um para o outro. A luz do pôr do sol tingindo-lhes o rosto, dando-lhes um aspecto adorável.

Em algumas raras vezes a vida nos cobra por nossos erros, nos nega o que mais desejamos, ainda que nem mesmo nós possamos admitir que é aquilo o que mais queremos. Então passamos a lamentar tudo o que dá errado, tudo o que não nos é dado, e, também, tudo o que nos é tomado. Proferimos maldições e imprecações aos quatro ventos, sem perceber-mos que de nosso jardim estamos colhendo as sementes que plantamos. Então, aparentemente do nada, somos agracia-dos com uma nova chance. De tanto implorarmos por nossa redenção, o meio de consegui-la acaba sendo entregue em nossas mãos. Cabendo apenas a nós moldarmos a nossa maneira os nossos desejos.

E foi o que aconteceu com Theo e Ayra.

Cansados de esperar, querer e desejar, fizeram aos céus um último pedido: desejaram que o universo e quem quer que o governasse, desse a eles a oportunidade de fazerem o que jamais julgaram serem responsáveis, pediram para tomar as rédeas de suas existências.

E seu benfeitor, aquele que acolheu seus desejos, sabia que sozinhos nunca conseguiriam. Sabia que essa batalha talvez não precisasse de um exército, mas não poderia ser vencida sem um companheiro. E então, um belo dia, man-dou à terra uma chuva acompanhada de ventania. Foram esses seus presentes. Foi tudo o que precisou fazer, pois a partir 6 6

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daquele momento, todo o resto dependeria unicamente dos dois humanos.

Ayra e Theo receberam seus presentes de braços abertos.

E assim como os seres humanos fazem com os presentes que recebem, por algumas vezes os deixaram de lado. Medo, ou algo mais, quem sabe? Theo e Ayra haviam se acostumado a viver em derrota, uma mania latente demais para ser igno-rada de uma hora para a outra. Mas então houve o dia em que, cansada de viver em desespero, a bailarina decidiu se reinventar, e se reinventando decidiu que lutaria por Theo.

Para que ele tivesse as mesmas chances que ela, para que seus presentes fossem valorizados.

A jornada não foi fácil, afinal de contas nenhuma nunca é. Abandonar a si mesmo é por vezes uma tarefa dura demais a ser cumprida, que pede sacrifícios que nem todos estão dispostos a fazer. Uma empreitada em que é preciso mais do que força de vontade para ser realizada. É preciso autoco-nhecimento, amor e em parte das vezes, é preciso ajuda de outro ser. Porque em algumas ocasiões fazer tudo sozinho é cansativo e desinteressante. É degradante.

Em meio a sua desesperança, Theo e Ayra resgataram um ao outro, encontraram uma brecha que era pequena demais para que pudesse ser aberta sozinha, mas suficiente grande para ser alargada por dois corações.

Porque talvez seja isso o que o amor faz, talvez seja isso o que o amor é. Uma união entre duas pessoas que só desejam o bem para aquele a quem amam. E que estão dispostos a esfolar as mãos para que um pouco de luz toque a vida do amado.

Aquela tarde foi escolhida para que Ayra e Theo celebrassem a vida. Para celebrarem a reconstrução que vivenciaram juntos.

Pois, finalmente, palavras e melodia uniram-se eternamente em dança sobre o palco de uma folha em branco.

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Este livro foi composto em Electra LT Std pela

Editora Multifoco e impresso em papel pólen 90 g/m².

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