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Sentia-se púrpura.

Levantava pela manhã, acariciava o gato, tomava seu chá, ia para a banheira brincar de afogar-se. Inspirava e respirava melancolia. Agarrando-se a vida, havia desistido de viver.

Durante a noite especulava o céu, contava estrelas, adi-vinhava os tons lilases das nebulosas. Era rendida por sua insanidade.

Com o passar dos dias, começou a sentir-se chata. Descrevia e revisava os aspectos de seu ser durante todas as horas do dia.

Entediava-se.

Ainda se recusava a encontrar Theo. Tinha medo.

Os olhos dele lhe mostrariam a realidade de seus tormen-tos, porque ele também sofria.

Eram fortes, mas suas fortalezas eram feitas das derrotas que colecionaram com o passar dos anos, e nisso residiam suas fraquezas.

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C a l e i d o s c ó p i o

Não poderiam se apoiar em suas paredes roxas, elas não seriam abrigo, não lhes protegeriam. A presença um do outro tratava de abrir rachaduras em suas tão frágeis moradas e, ao mesmo tempo, com um toque aveludado, acabavam por suavizar seus buracos.

Eram um paradoxo.

E cansada de viver com um pé em cada metade, Ayra tratou de se reconstruir.

Acordou mais cedo, deu comida para o gato, tomou café, cantou no chuveiro.

Ligou o rádio, quebrou a TV.

Descoloriu os cabelos.

Tornou a tingi-los.

Olhou para o espelho e gostou do reflexo que lhe acenara.

Agora se sentia e se via diferente. Mais menina, menos mulher. Frágil por fora, em ebulição no interior.

Fechou os olhos, sorriu, inspirou e expirou. O púrpura se fora.

Agora era violeta.

cartas nunca lidas

Se eu fizer seu chá preferido, você volta?

Não me entenda mal, minha querida, eu sei que precisa de seu tempo e de seu espaço. Não tenho nenhuma intenção de lhe tomar isso.

Ainda que insanamente tentemos, as algemas não fazem parte do nosso estoque particular de peças em uso.

Peço a sua volta porque sua ausência me inspira, e isso me amedronta. Gostaria que estivesse por perto para que 3 2

L u c i a n a A r a ú j o

pudéssemos lamentar nossas infelicidades por minutos a fio, nos embriagarmos em nossa autopiedade e nos afogarmos em meio a lamentos e reclamações.

Quando não estamos juntos somos obrigados a seguir em frente, e fico me perguntando se estamos prontos para isso.

Pergunto-me se fomos destinados a dar um passo atrás do outro, quando obviamente não somos capazes de fazer isso sem nos queixarmos um ao outro.

Toda uma vida baseada em nos contentarmos em ficar abaixo da média, e acalentar em nosso íntimo que, na verdade, somos muito mais do que esperam de nós.

É isto que sua ausência me causa, Ayra, essa vontade in-controlável de mostrar para o mundo que eu estou além de suas expectativas.

Eu tremo.

Não estou pronto para abandonar minha melancolia.

Meu flagelo.

Você volta? Volta para dividirmos nossas tristezas e desesperanças. Dividir nossas derrotas e fracassos, desconstruir a nós mesmos para que o outro possa refazer nossos pedaços?

Você volta?

poemas nunca lidos

Carrego a escuridão em meu peito

E nunca irei amanhecer

Nas estrelas terei pousada

No luar um cobertor

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C a l e i d o s c ó p i o

Não quero ser dia

Quero me escurecer

E nas trevas da noite

Cantarei o meu lamento

Por não querer consolo

E nem algum reparo

Perder-me-ei no infinito

De onde não quero ser resgatado

diário abandonado

Theo está em desespero.

Isso me despedaça. Ele ainda não compreende que precisamos nos abandonar para nos tornamos completos novamente.

Ele tem medo.

Ficamos por muitos anos presos em nossos vendavais in-ternos.

Minha chuva agora já é quase garoa.

Ele é temporal.

Louco, alucinado, estilhaçando o que está a sua frente.

E, na maior parte do tempo, ele só está diante de si mesmo.

Afundamos juntos em caminhos indesejáveis. Cheguei ao final do meu.

Theo perdeu-se em seu atalho.

Eu temo não ser capaz de guiá-lo para fora de sua trilha.

Por muito tempo andamos de mãos dadas pelos mesmos vales, sua alma já havia se habituado.

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Mas não a minha.

Minh’alma encontrava-se adormecida, nocauteada. E quando desisti de mim mesma, me desfiz de minhas amarras, abri meus braços para o mundo, então a vida me foi reinventada.

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L u c i a n a A r a ú j o

Capítulo Cinco

Encontraram-se à meia-noite.

O céu brilhava em faíscas multicoloridas.

Iluminava-se na recepção de um novo ano, um novo co-meço. Uma nova história.

Ele chegou devagar, cabeça baixa, olhar vago, corpo pen-dendo de um lado para o outro. Carregava dúvidas, incertezas, ansiedade e uma pitada de medo.

Ela estava radiante, o sorriso estampado no rosto, cabelos violetas balançando vivamente em suas costas. Trazia no peito o alívio e a liberdade.

Embora o encontro não tivesse sido premeditado, ambos sabiam que encontrariam o outro naquela área do parque.

Era a melhor visão para as luzes laranja que explodiriam na escuridão naquela noite, e aquela data era importante para os dois, ainda que de maneiras diferentes.

Ayra celebrava um novo começo, onde apenas seu mundo interior estivesse renascendo. Ela não tinha forças para expelir o que quer que estivesse lavando-lhe a alma e fazendo bem ao seu espírito.

Seu recomeço era solitário, mas não de uma forma ruim, acontecia exatamente como deveria ser.

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C a l e i d o s c ó p i o

Era ela por ela e ninguém mais. Havia o poeta, é claro, sempre haveria ele e sempre seria ele. Mas naquele delicado momento de reconstrução, Ayra só podia se dar ao luxo de depender de si mesma.

Theo celebrava mais um ano em desgraça com um hu-

mor negro invejável. Negava-se a fazer planos e promessas luminosas para o ano seguinte.

Não acreditava na esperança. Era um tanto melodramáti-co. Estava ali para admirar a fé das outras pessoas, admirar a facilidade com a qual elas abandonavam os últimos trezentos e sessenta e cinco (ou seis) dias e corriam de braços abertos para novos trezentos e sessenta e cinco (ou seis).

Mas não ele.

Os dias do ano seguinte serviriam para que ele remoes-se lentamente todas as horas vividas anteriormente. O que Theo precisava era de uma desconstrução, para em seguida ser reconstruído.

Abraçaram-se como velhos amigos, embora a intimidade latente que possuíam acabasse por denunciá-los.

Apenas amigos não trocavam olhares tão mudos e, ainda assim, cheios de palavras. Os carinhos de dois amigos não eram suaves e, ao mesmo tempo, provocadores. Não solta-vam faíscas.

Ayra e Theo tentavam enganar o mundo a sua volta, no entanto, as pessoas que os envolviam em uma multidão, tra-ziam em seus lábios um segredo, quando sorrindo, fitavam a bailarina e o poeta.

Ayra estava ali porque enquanto resgatava a si mesma, estava pronta para socorrer Theo.

Theo estava ali porque na medida em que tentava se apagar, fazia brilhar a existência de Ayra dentro de si.

Aquela noite foi mais uma das muitas em que o silêncio 3 8

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reinou sobre o casal. Era um tempo valioso, tempo que lhes havia sido roubado desde que a bailarina tinha se refugiado em si mesma.

Era hora do toque delicado, do caminhar suave das mãos pelo corpo, do redescobrimento gradual um do outro.

Existia algo de poético nos gestos adotados por Ayra e Theo. Como se um fosse o espelho da alma do outro.

O que, no fundo, era a mais límpida verdade.

Tão transparente que até mesmo o tom alaranjado daquele novo ano ficava embaçado. Eram feitos um paro o outro, disso não restava dúvida. Porém, ainda não estavam molda-dos um para o outro como uma vez estiveram.

Mas permanecer no molde significava uma vida estagna-da. Uma subvida.

E dois humanos que sentiam tudo em demasia, não haviam sido feitos se não para estar além da maioria.

Um tanto presunçoso, mas, ainda assim, uma verdade.

A verdade sobre Ayra e Theo, o casal dos encontros ao acaso.

Que, naquele dia, haviam se encontrado a meia-noite.

Não por obra do destino, ou premeditação. Encontraram-se a meia-noite porque era apenas isso que no fundo os dois deseja-vam, e sendo seus desejos fortes demais para serem silenciados, o universo tratou de unir o que nunca deveria ficar separado.

cartas esquecidas

Já faz algum tempo desde o ano novo, e nossos encontros casuais estão quase voltando a sua normalidade.

Se é que ela existe.

Eu já consigo respirar aliviada e sem dor. Ainda sinto fal-3 9

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ta do palco, é claro, mas não mais daquela maneira sufocan-te que me asfixiava a alma.

Você está se refazendo, sim, eu sinto isso. Embora ainda não entenda seus motivos, provavelmente os entenderia se fossem semelhantes aos meus. Mas acredito que não seja o caso.

Alias, já ia me esquecendo, desculpe-me pelas cartas, desculpe por fazê-lo escrever utilizando um método tão an-tiquado. Mas há quem diga que eu sou atemporal, então não me condene por as vezes adotar certas atitudes
vintage
.

Também está frio do seu lado da cidade? Algumas vezes parece que eu só posso sobreviver se for embaixo de um edre-dom, com uma xícara de chá ao meu lado e o gato esquen-tando meus pés.

Pergunto-me se já não está na hora de procurar outro palco onde arranhar a ponta da minha sapatilha.

Não olhe para a carta com a expressão de desprezo que eu sei que está se formando em seu rosto, eu fui clara quando conversamos. As coisas estão mudando, Theo, achei que você tinha percebido.

Não podemos mais esquecer de viver. Não podemos mais nos afogarmos em vodca toda vez que não nos for concedido o que queremos.

Não somos mais crianças, fazer birra não nos trará um brinquedo novo.

Enfim, acho que vou deixá-lo por enquanto.

Tomarei um chá.

Sei o que está pensando, e não, não largarei esse vício.

Da mesma forma que você não abandonará sua dose diária de vodka.

Deixo-o na esperança de que, quando nos encontrarmos novamente, seu iceberg já esteja em processo de degelo.

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poemas nunca lidos

Remoendo os dias escuros

Erguendo pontes e muros

Inspiração em desuso

Na escuridão confuso.

Vivendo em solidão

Escutando a canção.

Na janela um poeta

Traçando uma linha reta.

Abraçando o mundo

Reinventando seu tudo.

diário abandonado

Algumas vezes acredito que vivo em replay. Que as horas e os minutos são sempre os mesmos, girando infinitamente na roda do tempo.

Sempre as mesmas conversas.

Sempre as mesmas pessoas.

As mesmas lágrimas, as mesmas lamentações.

Sempre tudo igual, mas, ao mesmo tempo, tudo tão diferente. É como um viver sem vida, é estar aqui apenas para preencher uma cota há muito estipulada. Como se tudo não passasse de um filme, onde, por vezes a fio o diretor grita para que refaçamos nossos passos.

Dizer que já não sei quem sou seria uma grande men-tira. Talvez seja mais honesto dizer que ainda estou me co-4 1

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nhecendo. Desvendando-me. Como se estivesse rasgando pedaços da minha pele, um a um, de maneira que a carne fique exposta e tudo possa se refazer do zero. Tornando-me alguém novo e velho ao mesmo tempo.

Como um namoro que inicia no flerte. Que aos poucos vai ganhando a confiança, conquistando seus caminhos com calma e tranquilidade, pois não tem medo de se perder.

Mas neste momento não estou paquerando uma pessoa, estou namorando a vida. E essa é uma relação que merece um
ménage à trois
.

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Capítulo Seis

Encontraram-se na casa de chá, seu tom esverdeado era acolhedor.

Ayra carregava um caderno velho e desgastado. Theo trazia a ansiedade.

Ela pediu uma doce mistura de maçã, cravo e canela e ele não queria nada, aquilo que gostava de consumir não era servido no local. Teria de esperar até chegar em casa para afogar-se em seu copo de vodka, o mais querido e antigo amigo que ele possuía.

Estavam ali sem nenhum motivo aparente, como se apenas o desejo de estarem juntos os tivesse conduzido. Depois de tanto tempo sem compartilharem o mesmo espaço, a sau-dade os pegou desprevenidos.

A pueril dona do estabelecimento serviu o chá de Ayra.

Chamava-se Florence, e emanava de seu ser um cálido furor de primavera. Por um breve instante Theo a observou, intri-gado, alguma coisa nela despertava algo nele. Algo que não poderia ser nomeado. Florence lhe sorriu simpaticamente e, inconscientemente, o poeta retribui o sorriso. Com um simples acenar de cabeça, a jovem abandonou a mesa do casal, permitindo que eles mergulhassem em sua própria realidade.

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O encontro não era de todo inocente, havia muito a ser dito, a ser declarado. Os dias que passaram separados acaba-ram sendo prejudicial aos dois. Ainda que Ayra estivesse em reinvenção e Theo, em desconstrução. Quando ficavam um sem o outro, tornavam-se incompletos.

Agora ela precisava dele para poder refazer a si mesma novamente, e ele, mesmo sem saber ou admitir, precisava dela para que o resgatasse.

De uma forma ou de outra, a função inicial dos dois estava sendo mantida.

Haviam se conhecido para tornar capaz a salvação um do outro, para que a história de suas vidas fosse escrita no mesmo livro e com a mesma melodia.

Para Ayra, reascender Theo para a vida fazia parte de sua própria fogueira, e a única maneira que ela encontrou de aproximar-se novamente da alma dele foi pedindo que ele lhe desse a honra de ler seus escritos. E, sem saber o motivo, Theo somente deu-se conta de sua decisão quando a bailarina tinha em mãos seu velho caderno e o folheava com um interesse incomum. Aquele dia na casa de chá foi escolhido para que ela lhe devolvesse o caderno e desse seu veredicto a respeito daquilo que leu.

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