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Capítulo Dois

A perna elevava-se tão alto quanto podia, semelhante à pipa da criança que tenta chegar ao limite do céu.

Ayra girava em seu eixo, em uma pirueta perfeita. Da mesma forma que as palavras rodavam na mente de Theo, quando era chegada a hora de escrever.

Para Theo, ali no palco, Ayra tornava-se bela e, em con-trapartida, também mostrava-se terrível.

Era bela por suas delicadas feições, sua brilhante aura.

Terrível por representar tudo o que Theo mais temia.

Ainda assim, ele havia ido até lá. Queria vê-la, queria contemplá-la em seu momento de maior plenitude.

Enquanto a via bailar, divagava sobre como melhor poderia descrevê-la em mais um de seus poemas. Perdeu-se em devaneios até que o brilho de seus pensamentos foi atraído pela sapatilha cor de sangue que degradava os pés da bailarina. Os laços cruzados em volta dos tornozelos firmes indica-vam o caminho de seu corpo.

O desejo da carne.

Ayra o sentiu antes mesmo de vê-lo. Ele ardia. Ardor rubi.

Ela não sabia se fechava os olhos e agradecia aos céus 1 7

C a l e i d o s c ó p i o

pela presença dele ali, ou se o amaldiçoava baixinho em seus pensamentos.

Porque, naquele momento, a vida estava lhe cobrando os tropeços cometidos no piso de linóleo, e ela teria que abandoná-lo. Era sua última noite, então fez sua dança especial-mente para ele.

Ao fim, a cortina carmesim se fechou e poucos aplausos foram ouvidos naquele antigo teatro que, fazia muito tempo, era pouco frequentado.

O casal torto se encontrou com os olhos, e em seu breve contato, fizeram a promessa muda de tocarem-se mais tarde.

Ele aguardaria que ela despisse a alma bordô que usava para a dança, e ela ansiava pela doce pele do poeta.

Depois de algum tempo, Ayra e Theo enfim estavam juntos, e ela já havia abandonado seu papel.

A bailarina e o poeta mantinham a regra dos encontros ao acaso, pois conheciam as vielas da vida um do outro, sabiam onde encontrar o objeto de seus desejos quando a necessidade latente por companhia ficasse insaciável.

Ao deixarem o teatro, pegaram um táxi, cortaram a cidade. A luz rubra do pôr do sol atravessava as janelas do carro e tornava visível o incêndio interior do casal.

À porta do prédio coral, eles desceram, enlaçaram as mãos como não era de costume.

O ar vibrava mediante a luxúria que exalava de ambos.

Em uma dança muda, passaram a porta, atravessaram o cor-redor, chegaram ao quarto.

Despiram a alma e o corpo. Tornaram-se brancos um para o outro. Transparentes para o mundo.

Os corpos amaram-se em vermelho, pois o amor, para eles, só poderia caber nesse contexto.

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L u c i a n a A r a ú j o

E finalmente saciados da sede carnal, beberam da paz que só o prazer oferece.

cartas esquecidas

Lembro-me da primeira vez que o vi.

Estava parado em meio à chuva, perdido por entre os carros e as pessoas que o cercavam. Olhava desolado para o horizonte, creio que procurando entender como o destino o levou até aquele instante.

Confesso que não teria parado para olhá-lo duas vezes, caso meu guarda-chuva não tivesse sido arrastado pelo vento e parado aos seus pés.

Então, você me olhou e lançou aquele sorriso torto, perdido no canto de seus lábios. Pegou o guarda-chuva do chão com tanta delicadeza que, por um minuto, eu acreditei que aquela peça velha e mofada fosse algo muito valioso.

Por entre minutos, os momentos daquele dia foram passando. Tomamos um chá, conversamos, diria até que troca-mos certas confidências.

Talvez, se soubéssemos que nossa relação evoluiria para algo inominável, teríamos tido mais cautela em proferir nossas palavras. Sentenças duras podem ter sido ditas e gravadas em nossas mentes, e talvez elas nem sejam necessariamente verdadeiras.

Aquele dia falamos e ouvimos exatamente tudo que gostaríamos de escutar, mas talvez, em algum momento do nosso fim, desejaremos que as letras ganhem uma outra formação.

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C a l e i d o s c ó p i o

poemas nunca lidos

Você não vai contra isso.

Você não pode se livrar de mim.

Eu estou em você, em cada gota do seu sangue,

em cada célula do seu corpo, cada pensamento,

cada gesto, cada palavra. Eu sou você,

e você nada mais é do que uma serva minha.

Olhar minha imagem no espelho não ajuda. Luzes ro-dam na minha frente como uma grande roda-gigante.

Deixa-me tonta, me enjoa, me dá vontade de vomitar.

Deitada em minha cama, me perco nos pesadelos que me assombram mesmo acordada. Tem o rosto da escolha que fiz quando ainda não podia escolher; “quero ser bailarina, mamãe”.

Tolas palavras de uma criança, que foram tão bem-aceitas por uma mãe que já está morta.

E daí que falaram que eu não conseguiria? Que não era capaz, que não fazia “o tipo”? Quem se importa com isso, quando no palco eu sou tudo aquilo que elas gostariam de ser, e é de mim que eles não tiram os olhos?

Você está amarrada a mim, assim como amarra os laços da sapatilha em volta dos tornozelos.

É de noite que me torno tudo aquilo que você teme, é durante seu sono que eu me enrosco

em seus sonhos e te mostro quem você é realmente.

Mostro-te a glória e o abandono que eu causei.

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L u c i a n a A r a ú j o

Você não pode ter tudo.

Ou tem a beleza destinada a poucas,

ou tem a companhia dos seus.

No fim, você tem só a mim,

e é isso que importa.

Entro no palco. O mundo para. Só existe eu e a música.

Dançar, dançar, dançar.

Eu não canso, eu me perco no carrossel de piruetas.

Me sinto em casa.

Saio do palco e nenhuma das outras bailarinas me

[cumprimenta.

Escuto os risos de deboche que elas lançam pra mim.

Ora, por que eu ficaria no mundo delas, se o meu é muito

[melhor?

Eu tenho liberdade nele, liberdade que elas não têm.

Eu posso t-u-d-o.

Na lua ou no sol. No céu ou no inferno. Só existe eu,

[meu corpo perfeito, e a Ana. Sempre a Ana.

O que você procura criança? Seu par perfeito para o minueto? Sua meia-calça cor-de-rosa? Suas presilhas de

[cabelo?

Pegue-os, estão bem ali na sua frente, perto do espelho.

Oh não, não grite!

Por que esse espanto diante do seu reflexo? Diante daquilo que você se tornou? Não era isso que nós duas

[queríamos?

Agora está feito. Seu corpo é meu, assim como sua

[mente.

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C a l e i d o s c ó p i o

Você não é nada. Porque agora, eu sou você.

Não existe mais a primeira bailarina.

Não existe mais a filha única do papai

Não existe mais a princesinha da mamãe

Não existe mais a garota.

Só existe a Ana.

Não existo mais…

Sou feita de laços e fitas.

Tecidos e rendas.

Brilho e blush.

Sapatilhas e meia-calça.

Eu sou a bailarina, e a bailarina não sou mais.

A bailarina é a Ana.

Perco-me nos giros da pirueta. Sou uma roda gigante.

Nesse minuto estou no alto, e no segundo seguinte

[estarei no chão.

Não existe mais sentido, minha vida foi tomada de mim e

[eu a entreguei com vontade.

Não tenho motivos, só vejo uma saída. Só vejo o fim.

O fim da Ana, o meu fim.

O espetáculo termina, as cortinas se fecham.

E a bailarina jaz morta no piso de linóleo.

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diário abandonado

Eu disse adeus.

Já não pertenço ao palco, a partir de agora danço apenas no sótão de meu ser.

Fui reduzida ao meu nada.

Não que alguma vez tenha experimentado o topo, de alguma forma sempre me mantive à margem. Nunca alto demais ao ponto de levar um forte tombo e nem baixo demais ao ponto de ser esquecida.

Sempre fui mediana. Acredito que no fundo, nunca desejei ser mais do que isso.

Agora já posso vivenciar, rir, chorar à vontade. Não tenho mais fitas me amarrando, maquiagem impondo-me máscaras, músicas ditando meu ritmo.

Agora faço tudo por mim mesma, de acordo com minhas escolhas e minhas vontades.

Mas, se tudo o que eu sempre quis foi estar em um palco dançando, o que será de mim agora que isto me foi tirado?

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Capítulo Três

Amanheceu ciano.

Cor peculiar para o nascer do sol.

O céu estava em tempestade.

Era dia de Theo sentar à mesa, às voltas com sua máqui-na de escrever, era momento de ao menos tentar (fingir) dar vida às palavras que lhe perturbavam a mente.

Fazer dançar os dedos e, sendo um poeta, escrever.

Os encontros com Ayra estavam escassos, ela o havia abandonado para tentar encontrar a si mesma.

Mas ele sabia que, quando chegasse a hora, os corpos de ambos se encontrariam para preencher novamente o vazio em que suas almas os aprisionavam.

O poeta estava recluso, seus encontros ocasionais agora ocorriam com uma ou duas xícaras de café, seu estimulante mais produtivo.

Entregou-se àquela vida de solidão e melancolia desde garoto, pois sentia que nada nem ninguém no mundo poderia entendê-lo tão bem quanto ele próprio (ou nem mesmo ele). Havia se refugiado em seu íntimo, e criado barreiras para que nunca fosse libertado.

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O poeta queria tudo colorir com o tom azulado de sua pena. Sentia a necessidade latente de abraçar o que tanto lhe repulsava.

As cores.

Os sons.

Os sabores.

Quando era capaz de capturar cada detalhe da existência em suas opacas letras, poderia também gritar a todos que tudo lhe pertencia, que só a ele as dádivas eram dadas.

Mas com que frequência Theo permitia perder-se em seu mundo de palavras? Tão raro que, em certos momentos, até mesmo ele não recordava.

Todo poeta é solitário, todo poeta tem a si mesmo e ninguém mais. Todo poeta carrega dentro de si os corações de toda a humanidade, todo poeta tem para si aquela solidão infindável.

E havia Ayra.

A delicada bailarina que lhe tocava a alma tornava sua realidade mais suportável e, ao acaso, lhe resgatava a vida.

Não escrevia para se salvar. Escrevia porque poderia ser salvo.

poemas nunca lidos

Aperta o peito, mareja os olhos, seca a garganta.

Aprisiona na mente os momentos,

o gosto não desaparece da boca,

e o calor do abraço perdura.

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O riso ecoa nos ouvidos,

a recordação do toque causa arrepios,

o sorriso bobo escapa sozinho dos lábios.

As palavras faltam, a vontade aumenta.

Saudade.

É de agarrar e não soltar.

É de encolher, esconder.

Sussurrar.

Ocupa o peito, tira o ar, traz desejo.

E então, de repente, alivia, sai o peso.

Morre no abraço e no beijo.

cartas esquecidas

Faz algum tempo que venho guardando estas palavras, su-focando a vontade de escrever. Fiquei muito tempo perdida em mim mesma, tentando entender o que se passava, querendo aceitar os piores fatos, e por isso, creio que o abandonei.

Por favor, não encare isto como um medíocre pedido de desculpas. Muito embora acredite que mereça ouvi-lo (ou lê-lo) de mim, não me vejo culpada neste caso em particular, precisava afundar-me em meu ser e só a isso me dedicar.

Nossa relação sempre foi de amor e ódio, encontros e de-sencontros, eu sei. É impossível negar o quão fundo cada um está dentro do outro.

Sinto falta de ser sua pequena, de dar para você cada míni-2 7

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mo pedaço de meus sonhos e minhas vontades. Às vezes fico na dúvida se você merece ou não, cada uma dessas honras. Então me pergunto: se não for ele, para quem mais vou dá-las?

Confesso que sinto falta de quem eu sou quando estou contigo. Quanto mais convivo com os outros, mais confusa fico em relação a mim mesma.

Ainda há aqui dentro uma certeza tão grande e absoluta de que serei para sempre a tua menina, que nunca abando-narei as flores e as cores que escreveu para mim.

Mas agora me vejo diferente, me vejo mulher.

As vontades mais inesperadas, as certezas menos absolutas, os desejos descontrolados.

Ainda vejo muito de quem eu era aqui dentro. Mas também vejo uma nova eu.

Eu te peço, entenda, não estou te abandonado, estou reinventando, reescrevendo a nossa história.

Sempre será meu porto seguro, sempre será em seus ombros que acomodarei minha cabeça, sempre serão seus dedos que retirarão os fios de cabelos do meu rosto cheio de lágrimas e sorrisos.

Porque sendo menina ou mulher, no fim, é só de você que eu preciso.

Nunca fui e nunca serei boa em despedidas, além do mais, não existem motivos para começá-las agora.

Prefiro acreditar que as partes de nós que habitam um no outro se encontrarão em algum momento dessa história, por isso não há motivos para pressa.

Tentarei me manter por perto, então, mantenha-se alerta.

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diário abandonado

Sinto um turbilhão dentro de mim, tão complexo e de-sordenado que nem consigo distinguir cada coisa, nomear tudo o que está causando revolta aqui dentro. Talvez por isso a necessidade latente de descanso esteja me dominando. E

não seria um descanso apenas físico, também é preciso que meu espírito fique em repouso. É exigido tanto dele quanto do resto de meu ser.

Creio que seja este o momento certo para me isolar do mundo, das pessoas. De Theo.

Nosso relacionamento é confuso, incerto e complexo. E, infelizmente, tudo o que eu quero e preciso é de calmaria.

Isolamento.

Refúgio, abrigo. Esconderijo.

Dentro de mim mesma encontrei asilo. Por um tempo, ou talvez dois, meu abandono não terá morada.

Serei senhoria e inquilina de mim mesma.

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Capítulo Quatro

Estava sozinha.

Observava o mundo do alto de seu abismo interior. Em-bolada em posição fetal, chorava. Estava em crise, em desali-nho. Havia se embrenhado muito fundo em sua dor.

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